Oiço
muitas vezes citar os gregos antigos e recitar aquela fórmula de Delfos que se
atribui a Sócrates: «Homem, conhece-te a ti mesmo». Quando oiço isto, não sei
se é projecto próprio de quem declama se recado pouco humilde para quem ouve.
Será
que alguém quer verdadeiramente conhecer-se a si próprio e mergulhar fundo nos
seus sombrios esconsos?
Quem
verdadeiramente o queira que o faça, não o diga apenas e não aconselhe os mais.
Cada um de nós tem o inalienável direito de acertar ou errar por si próprio, de
conhecer-se ou de ignorar-se. Não podemos viver por interposta pessoa nem dizer
aos outros o que lhes convém ou não convém.
Conhecer-se
é compreender-se. Todavia, não há um ponto de chegada onde possamos dizer:
finalmente conheço-me, finalmente compreendo-me. Trata-se de um processo
contínuo e interminável, não de um curso em que se acumulam conhecimentos e se
obtém boa nota e diploma de prova final.
Tal
como não há curso, também não há técnicas nem métodos, porque conhecer-se
(compreender-se) não é racionalizar-se. Racionalizar só é útil para obtermos a
liberdade de duvidar das crenças que nos incutiram e daquelas que inventámos
através da experiência. Toda a crença é um obstáculo da compreensão e quanto
mais sagrada a julgarmos mais obstaculizadora ela será.
É
pela inteligência do coração que nos compreendemos e o coração, contrariamente
à mente racional, é algo de extremamente plástico e mutável que não depende da
acumulação de saberes: muda quando mudamos, constrói o futuro de cada dia sem
olhar ao peso das gerações mortas. A razão de cada um pouco muda por si mesma,
faz-se mais por influência externa do que por vontade própria. É através dela
que a autoridade nos condiciona e nos domestica. Na razão habitam todos os
saberes, todas as autoridades e todas as eras; na inteligência do coração
habita apenas cada um de nós a sós.
1 comentário:
Muito interessante o texto de Abdul Cadre.
Muito agradecido pela partilha.
Manuel João Croca
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