Ontem houve uma daquelas noites que nos vão perdurar na memória até que os dias se apaguem. Só posso lamentar que, de qualquer maneira, não tivéssemos gravado o que se passou uma vez que, para os meios disponíveis, o filme dos acontecimentos estaria, desde logo, fora de questão.
“Esta Noite O Amanhã”, foi o nome que os organizadores escolheram para o encontro que abriu com uma peça de Lopes Graça, pelo conjunto de câmara, um quarteto de cordas que o professor de música dirige, para evoluir num intercalar de poesia e pequenas sequências de interpretações que foram de um pequeno recital de guitarra clássica por um dos miúdos da aldeia e que mostrou ser um verdadeiro virtuoso naquele instrumento e na imaginação com que dele faz uso, apresentando-nos interessantíssimas versões de temas populares numas misturas a soar a jazz e, estranhamente, a fado e que para mim foi a pérola do serão e que, precedido por uma excelente actuação do coro da sociedade filarmónica da Vila, antecedeu o centro do cartaz com a hora e meia de actuação do Dr. José Afonso e do Padre Francisco Fanhais que, ora acompanhados por outros dois músicos, ora sozinhos em cena, nos presentearam com um espectáculo que nos fez cantar e rir, aplaudir e pensar e no fim, mal as últimas palmas se aquietaram e as pernas começaram a endireitar-se, ali manteve muitos de nós numa conversa de sentimentos dúbios de esperança e alento para a ideia de que este mundo de injustiça não poderá perdurar para sempre. Foi pois um seroar que se espreguiçou na madrugada e que a todos inundou de alegria. E devo acrescentar que dentro desta matriz, há muito que não presenciava uma coisa tão agradável e, é bom sublinhá-lo, de tamanha elevação.
É claro que o mérito vai inteirinho para os intérpretes que tudo executaram sem falhas e, em mais que um caso, com uma perfeição que a nenhum envergonharia fosse lá onde fosse que tocasse. Aliás, isso é um dos aspectos que geralmente me aborrecem nestes eventos, pois os participantes costumam encarar as suas interpretações quase como secundárias em relação àquilo que pretensamente pensam ter para dizer, com isso se despreocupando com o desleixo de falhas e desafinações e, para meu gosto e mesmo que não seja essa a sua intenção, como certamente não será, acabando por tratar a plateia segundo aquele velho ditado do para quem é bacalhau basta e, desse modo, afastando sem ter chegado a atrair. Desta vez foi diferente e todos se comportaram como qualquer profissional o faria se estivesse a pisar o palco mais importante do mundo. Para esse resultado muito deve ter contribuído o rigor e formalismo de uma organização que saiu da cabeça dos mais novos que são, afinal, quem assegura toda a animação cultural da nossa associação e foram ao pormenor de criarem efeitos de luz para distraírem as atenções dos diligentes arrumadores que retiraram e colocaram utensílios e suportes em sítios previamente estudados e assinalados e, ao mesmo tempo, serviram de ponto de demarcação entre as partes sucessivas que um discretíssimo apresentador foi apenas identificando. Não tenho dúvidas que uma tal condução das entradas e saídas dos músicos e recitadores foi o principal constrangimento para a eventualidade de participações menos cuidadas, pois, estando, tudo a correr tão bem, ninguém queria correr o risco de ficar lembrado por estragar algo tão bonito. Por isso digo que a ovação vai directa para os artistas, sendo as congratulações para repartir entre estes e quem cuidou para um acontecimento à altura do que podemos designar por uma noite memorável.
É o valor inestimável que têm estas casas como a nossa associação cultural.
Naturalmente estamos a falar de trabalho amador e geralmente de qualidade um tanto ou quanto duvidosa, contudo, nem por isso menos relevante ou importante. Que mal poderá haver por gente simples e humilde decidir representar o Bernardo Santareno? Será que o Autor fica diminuído por isso? Não me parece e se ao que faz de actor isso até pode confluir para lhe preencher a vida e a alma, ao que está no lugar do público, na larguíssima maioria, trata-se da única forma de poder assistir a teatro e a gozar os prazeres que lhes estão associados. Quem diz esta diz as restantes manifestações culturais, a começar pelas leituras que uma biblioteca à mão e para tanto orientada, proporciona e incentiva. Não haverão vantagens em uma população ser tanto mais culta quanto possível? Haja liberdade para isso e é justamente esta nuance que mais assusta os ditadores, não que um povo culto deles possa estar a salvo, antes pela percepção de isso só acontecer à medida que a liberdade se consolida e alarga. E o que estes espaços populares permitem é precisamente o sentido inverso dessa lógica, o proporcionarem aos mais pobres as possibilidades de usufruírem de alimentos do espírito a que as suas bolsas não chegam e as distâncias dos centros maiores ainda mais obstáculos colocam. Espanta-me como há quem desdenhe deste género de associativismo pois isso só pode decorrer da falta de compreensão daquilo que acabei de dizer e quando isso parte de gente que se diz progressista, então é um dos indicadores para percebermos estar perante um pateta qualquer.
Curiosamente a PIDE não andou por aí, pelo menos que alguém o tenha percebido. Não é que isso me entristeça, muito pelo contrário, ou que preferisse a presença tutelar desses esbirros o que de modo algum é ou poderia ser o caso. Bem vistas as coisas, nem as conversetas se teriam prolongado sob as estrelas se essa canalha por aqui tivesse andado com a sua sinistra vigilância. Mas fico curiosa por pensar que tão agradável ausência possa ter a ver com o facto de eu, de alguma maneira, estar a ser uma colaboradora do Ministério da Educação Nacional e, por essa via, estar a colaborar e a contribuir mesmo que indirectamente, para levar os objectivos do governo a bom porto. Não sei porquê mas, apesar disso, tenho as minhas dúvidas. Provavelmente andarão mais preocupados e ocupados a armadilhar as veleidades da campanha oposicionista para as eleições do próximo mês e a que mais do que um movimento democrático decidiu concorrer. Fosse esta a razão e teríamos aí um motivo adicional para gargalhar à custa do tirano. É que pela primeira vez em vinte e tantos anos de vida e muitos mais espectáculos realizados, gritou-se abertamente abaixo o fascismo e viva a liberdade que foi como alguns reagiram ao refrão dos “Vampiros” do baladeiro de Coimbra.
“Esta Noite O Amanhã”, foi o nome que os organizadores escolheram para o encontro que abriu com uma peça de Lopes Graça, pelo conjunto de câmara, um quarteto de cordas que o professor de música dirige, para evoluir num intercalar de poesia e pequenas sequências de interpretações que foram de um pequeno recital de guitarra clássica por um dos miúdos da aldeia e que mostrou ser um verdadeiro virtuoso naquele instrumento e na imaginação com que dele faz uso, apresentando-nos interessantíssimas versões de temas populares numas misturas a soar a jazz e, estranhamente, a fado e que para mim foi a pérola do serão e que, precedido por uma excelente actuação do coro da sociedade filarmónica da Vila, antecedeu o centro do cartaz com a hora e meia de actuação do Dr. José Afonso e do Padre Francisco Fanhais que, ora acompanhados por outros dois músicos, ora sozinhos em cena, nos presentearam com um espectáculo que nos fez cantar e rir, aplaudir e pensar e no fim, mal as últimas palmas se aquietaram e as pernas começaram a endireitar-se, ali manteve muitos de nós numa conversa de sentimentos dúbios de esperança e alento para a ideia de que este mundo de injustiça não poderá perdurar para sempre. Foi pois um seroar que se espreguiçou na madrugada e que a todos inundou de alegria. E devo acrescentar que dentro desta matriz, há muito que não presenciava uma coisa tão agradável e, é bom sublinhá-lo, de tamanha elevação.
É claro que o mérito vai inteirinho para os intérpretes que tudo executaram sem falhas e, em mais que um caso, com uma perfeição que a nenhum envergonharia fosse lá onde fosse que tocasse. Aliás, isso é um dos aspectos que geralmente me aborrecem nestes eventos, pois os participantes costumam encarar as suas interpretações quase como secundárias em relação àquilo que pretensamente pensam ter para dizer, com isso se despreocupando com o desleixo de falhas e desafinações e, para meu gosto e mesmo que não seja essa a sua intenção, como certamente não será, acabando por tratar a plateia segundo aquele velho ditado do para quem é bacalhau basta e, desse modo, afastando sem ter chegado a atrair. Desta vez foi diferente e todos se comportaram como qualquer profissional o faria se estivesse a pisar o palco mais importante do mundo. Para esse resultado muito deve ter contribuído o rigor e formalismo de uma organização que saiu da cabeça dos mais novos que são, afinal, quem assegura toda a animação cultural da nossa associação e foram ao pormenor de criarem efeitos de luz para distraírem as atenções dos diligentes arrumadores que retiraram e colocaram utensílios e suportes em sítios previamente estudados e assinalados e, ao mesmo tempo, serviram de ponto de demarcação entre as partes sucessivas que um discretíssimo apresentador foi apenas identificando. Não tenho dúvidas que uma tal condução das entradas e saídas dos músicos e recitadores foi o principal constrangimento para a eventualidade de participações menos cuidadas, pois, estando, tudo a correr tão bem, ninguém queria correr o risco de ficar lembrado por estragar algo tão bonito. Por isso digo que a ovação vai directa para os artistas, sendo as congratulações para repartir entre estes e quem cuidou para um acontecimento à altura do que podemos designar por uma noite memorável.
É o valor inestimável que têm estas casas como a nossa associação cultural.
Naturalmente estamos a falar de trabalho amador e geralmente de qualidade um tanto ou quanto duvidosa, contudo, nem por isso menos relevante ou importante. Que mal poderá haver por gente simples e humilde decidir representar o Bernardo Santareno? Será que o Autor fica diminuído por isso? Não me parece e se ao que faz de actor isso até pode confluir para lhe preencher a vida e a alma, ao que está no lugar do público, na larguíssima maioria, trata-se da única forma de poder assistir a teatro e a gozar os prazeres que lhes estão associados. Quem diz esta diz as restantes manifestações culturais, a começar pelas leituras que uma biblioteca à mão e para tanto orientada, proporciona e incentiva. Não haverão vantagens em uma população ser tanto mais culta quanto possível? Haja liberdade para isso e é justamente esta nuance que mais assusta os ditadores, não que um povo culto deles possa estar a salvo, antes pela percepção de isso só acontecer à medida que a liberdade se consolida e alarga. E o que estes espaços populares permitem é precisamente o sentido inverso dessa lógica, o proporcionarem aos mais pobres as possibilidades de usufruírem de alimentos do espírito a que as suas bolsas não chegam e as distâncias dos centros maiores ainda mais obstáculos colocam. Espanta-me como há quem desdenhe deste género de associativismo pois isso só pode decorrer da falta de compreensão daquilo que acabei de dizer e quando isso parte de gente que se diz progressista, então é um dos indicadores para percebermos estar perante um pateta qualquer.
Curiosamente a PIDE não andou por aí, pelo menos que alguém o tenha percebido. Não é que isso me entristeça, muito pelo contrário, ou que preferisse a presença tutelar desses esbirros o que de modo algum é ou poderia ser o caso. Bem vistas as coisas, nem as conversetas se teriam prolongado sob as estrelas se essa canalha por aqui tivesse andado com a sua sinistra vigilância. Mas fico curiosa por pensar que tão agradável ausência possa ter a ver com o facto de eu, de alguma maneira, estar a ser uma colaboradora do Ministério da Educação Nacional e, por essa via, estar a colaborar e a contribuir mesmo que indirectamente, para levar os objectivos do governo a bom porto. Não sei porquê mas, apesar disso, tenho as minhas dúvidas. Provavelmente andarão mais preocupados e ocupados a armadilhar as veleidades da campanha oposicionista para as eleições do próximo mês e a que mais do que um movimento democrático decidiu concorrer. Fosse esta a razão e teríamos aí um motivo adicional para gargalhar à custa do tirano. É que pela primeira vez em vinte e tantos anos de vida e muitos mais espectáculos realizados, gritou-se abertamente abaixo o fascismo e viva a liberdade que foi como alguns reagiram ao refrão dos “Vampiros” do baladeiro de Coimbra.
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