segunda-feira, 8 de julho de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (36)

A Mulher do Cabelo Vermelho, Amedeo Modigliani, 1918
Óleo sobre Tela, 46x29cm

A MULHER DO CABELO VERMELHO

O seu cabelo era muito comprido… disposto em caracóis perfeitos e leves.
Como um desenho, talvez emoldurando um rosto que apenas se adivinhava. Alguns haviam já tentado imaginá-lo perfeito na pele e no traço. Outros diziam apenas que algum defeito teria…
O facto é que ninguém parecia estar certo acerca da mulher do cabelo vermelho.
E sempre que alguma conversa se chegava ao assunto, alguém concluía que, embora nunca ninguém a tivesse visto, a verdade é que a mulher não tapava o rosto nem parecia preocupar-se em mantê-lo escondido.
Simplesmente, por circunstâncias várias e que não se chegava a conseguir explicar, acontecia estar sempre de costas ou quase.

A menina tinha seis anos e era muito calada. Todos os dias, sempre à mesma hora, comia três metades de bolacha. A mãe da menina, um quarto de hora antes, embrulhava em papel de alumínio três bolachas com recheio de chocolate. Pouco depois, a menina desembrulhava as bolachas, partia-as ao meio e comia as três metades. A mãe da menina sorria e acariciava-lhe o rosto.
Ele permanecia quieto ao seu lado e abanava ligeiramente o rabo. Acabadas as bolachas, ou as suas metades, o cão levantava-se com ar preguiçoso, cheirava o chão em busca de migalhas e voltava a deitar-se.
A menina sorria e acariciava-lhe o pelo.
O pai da menina chegava então a casa e o silêncio tornava-se imperativo. Dormia, depois de uma noite de trabalho e era preciso deixá-lo descansar. Tinha o sono muito leve.
A menina saía com o cão. E a mãe deixava-a ir.

No fim da aldeia, uma casa cinzenta e grande. Com um muro a toda a volta e um sino dourado junto do portão de ferro. Na placa, liam-se apenas três palavras escritas com letras cuidadosamente desenhadas: «CASA DA BRUXA».
Na maior parte das vezes, as bruxas não o são. São somente pessoas desconhecidas.
Mas aquela bruxa, a bruxa que morava na casa cinzenta e grande, no fim da aldeia, era mesmo uma bruxa a sério. E, sendo uma bruxa a sério, sabia tudo sobre o passado, o presente e o futuro de todas as pessoas daquele lugar. Conhecia cada uma das vidas… como se cada uma delas fosse a sua própria vida. E delas, de todas elas, tinha uma espécie de memória que desnudava o tempo e lhe mostrava o corpo das mentiras. Por isso, todas as pessoas a temiam… na verdade, temiam-na sobretudo por medo de se verem inteiras.

Ali, na casa da bruxa, a mulher do cabelo vermelho nunca ficava de costas.
Ali, naquela casa cinzenta e grande, o seu passado era o tempo de ser criança. O tempo em que a mãe lhe embrulhava três bolachas e ela comia as metades inteiras de cada uma. Era o tempo em que o seu pai dormia e a mãe a deixava sair com o cão.
Ali, naquela casa no fim da aldeia, o seu presente era um tempo em que todas as pessoas a olhavam sem medo e a conseguiam ver.
Ali, na sua casa, o seu futuro era um tempo desconhecido.

Ali, a mulher do cabelo vermelho era feliz e via-se inteira. 

Maria Teresa Bondoso

4 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom Dia, Teresa e António!

Teresa,
A Mulher do Cabelo Vermelho, que aqui reencontrei hoje, é mais uma das tuas fascinantes personagens. O universo feminino, histórias que fazem contos que nos levam até outras histórias, porque ler também são viagens intertextuais, não achas? Lembrei-me de uma pequena história que partilhámos há dias, e que também tinha a ver com cabelos e cores. Ambas no mesmo patamar, na minha opinião!

António,
Como sempre uma 'ilustração' perfeita das palavras da Teresa (desta vez não tive qualquer dúvida de que se tratava de um texto da Teresa). Como está um calor quase insuportável, que em nada convida ao passeio, que tal uma aulinha sobre Modigliani? São sempre refrescantes :)

Beijinhos aos dois!

A.Tapadinhas disse...

Modigliani foi sempre, mesmo para os mais excêntricos (!), uma figura excêntrica, refractária a qualquer classificação. Desde o o primeiro momento, manifesta a sua rejeição às imposições de qualquer escola e grita a sua independência como criador.

É lendária a atracção que desperta em todas as mulheres e a paixão com que as pinta e ama. Jean Cocteau descreveu-o, desta maneira: Um fogo escuro iluminava todo o seu ser e até irradiava através da sua roupa, dando ao seu aspecto negligente um ar de dandismo. Era alegre, engenhoso, encantador".

A sua primeira exposição individual, na galeria Berthe Weill, foi interditada pela polícia por causa de uns nus considerados imorais.

Nessa altura conheceu a sua última companheira, Jeanne Hébuterne, uma jovem de 19 anos de quem teve a sua única filha, melhor dizendo, única reconhecida como tal.

Com a saúde a piorar devido ao excessivo consumo de álcool e drogas, o casal passa uma semana de terrível agonia, no seu estúdio, sem ter, nem pedir, a ajuda de ninguém. O pintor não resiste e morre com 36 anos de idade: Jeanne, grávida de 9 meses, suicida-se, atirando-se da janela do seu andar!

Há um filme apaixonante que retrata a parte que mais nos interessa da vida de Modigliani. Uma sinopse:

Estamos em 1919. A Grande Guerra acabou e a vida nocturna em Paris está cheia de Paixão escura e Obsessão descontrolada. No café Rotonde, o refúgio dos artistas, encontramos uma mesa, como qualquer outra na história: Picasso, Rivera, Stein, Cocteau, Soutine, Utrila e Modigliani. Esta é a história da rivalidade entre Modigliani (Andy Garcia) e Picasso (Omid Djalili). Dois Homens cuja inveja um do outro é alimentada pelos seus brilhos, arrogâncias e paixões.

Por hoje é tudo!

Beijo,
António

Amélia Oliveira disse...

Vou procurar o filme.
Obrigada! E abraço!

Amélia

Unknown disse...

Como sempre, uma bela escolha de imagem. Cabe-me agradecer a publicação do meu texto, o comentário da Amélia e também a oportunidade de aprender. também eu irei procurar o filme. Ficou-me o "bichinho" e é ruidoso.