Two Camels and a Donkey, Paul Klee, 1915 Colecção Privada |
REENCONTRO
Nasceram os dois naquele dia, naquela aldeia, naquele lugar longe e frio de um mundo que eu não conheço, mas do qual ouvi falar.
Nasceram os dois naquele dia, naquela aldeia, naquele lugar longe e frio de um mundo que eu não conheço, mas do qual ouvi falar.
Iguaizinhos… ambos
gordinhos de alegria e de carnes, com umas belas bochechas rosadas e espalhando
saúde.
Os dois irmãos desde
cedo que tinham tido sortes diferentes.
Um, ainda bebé,
foi-se embora com o tio.
O outro ficou naquela
terra fria e longe, acabando por crescer de um modo
completamente diferente do seu irmão. Por agasalho usava peles de animais e
como alimento comia uma espécie de papa da qual apenas o mais velho da aldeia
conhecia o segredo. Todos sabiam, no entanto, que aquela espécie de papa podia,
de uma vez só, alimentar corpo e alma, tal era o conforto que causava em quem
dela se nutrisse.
A mãe dos dois rapazes nunca aceitou a ausência do outro filho e, desde
o dia em que, sem uma lágrima, ambos se separaram, nunca mais falou. Olhava,
quieta, o longe dos caminhos e, num sorriso que apenas o seu outro rapaz
conseguia ver, trazia para perto a presença de quem muito cedo havia partido.
Pode dizer-se que, durante muito tempo, era aquele sorriso adivinhado o que
mantinha os dois filhos, o de longe e o de perto, ligados àquela mulher séria e
triste de ausência.
O rapaz de perto era muito sossegado. Por companheiros tinha apenas um
camelo cor de mel, do qual raramente se separava, e um pequenino livro de
páginas velhas e gastas. Nessas páginas moravam histórias escritas por alguém
que as pensou daquela maneira – mas que o menino não conseguia ler – e moravam também
outras que o menino todos os dias inventava.
Eram histórias muito diferentes umas das outras, mas todas elas falavam
de um rapaz de faces rosadas, de cabelos vermelhos e compridos, vestido com
peles de animais mais coloridos do que aqueles que povoavam a aldeia.
Certamente, pensava o menino, eram animais do reino das cores, onde existiam
todas as memórias e lembranças, mesmo aquelas dos tempos que ainda haviam de
vir.
Um dia, muito cedo, o rapaz acordou com uma espécie de ideia mal
amanhada de um sonho que teimava em não se mostrar completo. Comeu as papas,
ainda mais depressa do que o costume e sentiu-se logo muito bem. Fechou os
olhos, respirou fundo e buscou, num lugar morno e sem tempo, o pensamento dos
sonhos.
Esperou.
Demorados dois dias, o pensamento chegou. Trazia com ele um homem sorridente e um menino rosadinho e gorducho… naquele sonho a mãe do menino falava com uma voz muito nova e dizia «meu filho». Se não fossem as palavras, juraria que se tratava da sua mãe. Era igualzinha, mas essa, a do sonho, tinha um riso muito claro e uma voz muito doce. Tal como as outras mães da aldeia, aquelas que o menino via às vezes da janela do seu quarto a passearem com meninos que deviam todos ser irmãos de outros meninos.
Demorados dois dias, o pensamento chegou. Trazia com ele um homem sorridente e um menino rosadinho e gorducho… naquele sonho a mãe do menino falava com uma voz muito nova e dizia «meu filho». Se não fossem as palavras, juraria que se tratava da sua mãe. Era igualzinha, mas essa, a do sonho, tinha um riso muito claro e uma voz muito doce. Tal como as outras mães da aldeia, aquelas que o menino via às vezes da janela do seu quarto a passearem com meninos que deviam todos ser irmãos de outros meninos.
Como era um sonho, não estava ainda acabado… quem seria o homem
sorridente? Não era dali, certamente… porque os seus pés estavam ligados à
barriga por dois pauzinhos de pele colorida. E os homens da aldeia – aqueles
que o menino via atrás das mães da aldeia, a passearem com meninos que deviam
todos ser irmãos de outros meninos – tinham os pés ligados às saias da pele de
animais menos coloridos do que os animais do reino das cores.
Também lhe parecia que o seu sonho tinha dentro uma memória de coisas para acontecer… mas não tinha a certeza. Ficou contente.
Também lhe parecia que o seu sonho tinha dentro uma memória de coisas para acontecer… mas não tinha a certeza. Ficou contente.
O menino contou o sonho ao seu amigo camelo.
E o camelo, que era, como todos os camelos, muito sábio, sorriu. Num
sorriso igualzinho ao da mãe do menino quando, quieta, olhava o longe dos
caminhos e trazia para perto a presença de quem muito cedo havia partido.
Nesse mesmo dia, mais tarde, o menino já quase preso ao sono, ainda viu
a sua mãe e o camelo… ambos sorriam com um sorriso muito claro… e ambos falavam
com uma voz muito doce.
Adormeceu serenamente. Estava contente.
De manhã, quando acordou, a sua mãe tinha no corpo peles de animais coloridos e no rosto um sorriso claro e cheio. A sua voz, de nova, fez-se verdade.
«Levanta-te, meu filho e vem comigo», disse-lhe.
O menino sorriu e foi. Sem medo e sem silêncio de mãe.
Estava frio.
Abriu a porta.
Do outro lado da porta, um menino de faces rosadas, vestido com peles de
animais coloridos, mostrava no corpo o riso da alma.
Por trás, o camelo sorria.
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