A Liberdade Guiando o Povo, Eugène Delacroix, 1830 Óleo sobre Tela, 260x325cm |
O Povo
Lembro-me daquele homem
e não se passaram
mais do que dois
séculos desde que o vi,
não andou de cavalo nem
de carroça:
descalço
anulou
as distâncias
e não levava espada nem
armadura,
apenas redes ao ombro,
machado ou martelo ou
pá,
e nunca espancou o seu
semelhante:
a sua luta foi contra a
água ou a terra,
contra o trigo para que
houvesse pão,
contra a árvore gigante
para que desse lenha,
contra os muros para
abrir as portas,
contra a areia
construindo muros
e contra o mar para o
fazer parir.
Conheci-o e não se
apaga da memória.
Caíram em bocados as
carroças,
a guerra destruiu
portas e paredes,
a cidade tornou-se num
punhado de cinzas,
transformaram-se em pó
todas as roupas,
mas para mim ele
subsiste ainda,
sobrevive na areia,
quando antes parecia
ser ele
o menos recordado.
No suceder de gerações
e gerações
foi por vezes meu pai
ou meu parente
ou apenas, sendo ele ou
não,
aquele que não voltou à
sua casa
porque a água ou a
terra o engoliram
ou uma máquina ou uma
árvore o deceparam
ou foi aquele enlutado
carpinteiro
que ia atrás do caixão,
sem lágrimas,
ou alguém que não tinha
nome,
que se chamava metal ou
madeira,
para quem todos os
outros olharam com indiferença
vendo o formigueiro
sem olharem para a
formiga
e quando os seus pés
não se mexeram,
pois o pobre de tão
cansado tinha morrido,
não viram nunca que o
não viam:
outros pés havia já nos
lugares onde estivera.
Os outros pés eram ele
próprio,
as outras mãos também,
o homem renovava-se:
quando parecia já
ultrapassado
era novamente ele,
ali estava outra vez
cavando a terra,
cortando pano, mas sem
camisa,
ali estava e não
estava, como dantes,
tinha partido e estava
de novo ali,
e como nunca teve
cemitério,
nem campa, nem o seu
nome gravado
sobre a pedra que
britou suando,
ninguém sabia jamais
quando chegava
nem soube nunca quando
estava morrendo,
de tal maneira que só
quando o pobre pôde
ressuscitou outra vez
sem ser notado.
Era o homem certamente,
sem herança,
sem vaca, nem bandeira,
e não se diferençava
dos outros,
os outros que eram ele,
visto de cima era
cinzento como o subsolo,
como o couro era pardo,
colhendo trigo era
amarelo,
no fundo da mina era
negro,
era cor de pedra no
castelo,
no barco pesqueiro era
cor de atum
e cor de cavalo na
planície:
como poderia alguém
saber ao certo
se era o inseparável, o
elemento,
terra, carvão ou mar
vestido de homem?
E onde viveu crescia
tudo quanto o homem
tocava:
a pedra hostil,
quebrada
pelas suas mãos,
tornava-se ordenada
e uma a uma formaram
a recta claridade do
edifício,
com as suas mãos fez o
pão,
pôs os comboios em
movimento,
povoaram-se de aldeias
as distâncias,
outros homens nasceram,
chegaram as abelhas,
e porque o homem cria e
se multiplica
a primavera foi em
direcção ao mercado
por entre padarias e
pombas.
O pai dos pães foi
esquecido,
ele que traçou a terra,
pisando
e abrindo regos,
acarretando areia,
quando tudo ficou
pronto já não existia,
a sua existência
ofertava-a, isso era tudo.
Foi trabalhar noutros
lugares, e depois
morrer rolando
lentamente
Como um seixo do rio:
arrastando pelas águas
levou-o a morte.
Eu, que o conheci, vi-o
descer
até ser somente o que
deixava:
ruas que apenas pôde
conhecer,
casas que jamais
habitaria.
E volto a vê-lo, e
espero cada dia.
Vejo-o no seu caixão
ressuscitado.
Distingo-o entre aqueles
que são seus
semelhantes
e parece-me que não
pode ser,
que assim não chegamos
a lado nenhum,
que dessa forma não se
conquista a glória.
Eu penso que este homem
Devia estar num trono,
bem seguro e coroado,
Penso que os que
fizeram tantas coisas
deviam ser senhores de
todas as coisas.
E os que fazem o pão
deviam comer!
E deviam ter luz os que
trabalham nas minas!
Mas chega de tantas
coisas sombrias!
Chega de pálidos
desaparecidos!
Nem mais um homem que
passe sem reinar.
Nem uma só mulher sem o
seu diadema.
Para todas as mãos
luvas de ouro.
Frutos de sol para toda
a escuridão!
Eu conheci aquele homem
e quando pude,
quando tive olhos para
olhar
e voz para falar
procurei-o entre os
campos, e disse-lhe
apertando-lhe um braço
que não se desfizera ainda:
«Partirão todos, mas tu
ficarás vivendo.
Tu acendeste a vida.
Tu criaste o que era
teu.»
Por isso ninguém se
enfade quando
pareço que estou
sozinho e não estou sozinho,
quando não estou com
ninguém e falo para todos:
Alguém me está
escutando e não dão por isso,
Mas aqueles que eu
canto e conhecem a razão
esses continuarão a
nascer e povoarão o mundo.
Pablo Neruda
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