terça-feira, 13 de agosto de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Desde muito novinha que a Raquel deu mostras de uma inteligência fora do vulgar que a poderia catapultar para os altos voos que hoje são os seus. Lembro-me bem dela, desde pequenina, sempre muito senhora de si e concentrada nas brincadeiras que fazia com os outros miúdos e que nunca deixava de conduzir quando os trilhos ameaçavam seguir por agitações que não eram do seu agrado. E especialmente recordo-me da cumplicidade que na adolescência mantinha com o Carlos Manuel e, muito embora saiba que é uma parvoíce os pais pensarem esses futuros a respeito dos filhos, me levavam a pensar se um dia não viriam aqueles dois a unir os seus destinos. Não foi isso que veio a suceder, mas na memória ficaram-me as conversas em que aquela revelava um conhecimento muito acima das outras raparigas e rapazes, já de si, praticamente todos num plano superior àquilo que podemos supor que é a mediania nacional, bem como uma capacidade de argumentação que lhe franqueavam as portas para leituras próprias e pontos de vista pessoais sobre os assuntos que lhe despertavam atenções e interesses particulares. Tenho bem presente como ela era obstinada com o cumprimento dos deveres e como se mostrava incansável em obter informação e sabedoria a partir de toda e qualquer fonte que estivesse ao seu alcance, naturalmente com relevo para os livros que, ainda a partir da puberdade, a acompanhavam por onde quer que andasse. Mais tarde, quando esta filha do Quico me passou pelas mãos, não tive qualquer dúvida em perceber que tinha pela frente uma alma especial e em antever que ela só poderia ir longe com todo aquele gosto e empenho não só na procura de saberes e competências, como igualmente o desejo incondicional de alcançar um aperfeiçoamento constante e de em tudo colocar o melhor de que era capaz. Parece que a estou a ver, com o nariz arrebitado que um franzir o sobrolho muito peculiar acentuava, toda ela interessada em me ouvir responder às suas dúvidas sobre se determinadas ideias que estava a desenvolver a respeito de um qualquer romance tinham razão de ser, se eram sustentáveis, sobretudo no âmbito em que ela o fazia, se não haveria uma qualquer maneira de mostrar que eram falsas, palmilhando ao meu lado o trajecto entre a escola e a porta da minha casa, tantas e tantas vezes entrando para que eu não tivesse que interromper algum pensamento ou alguma observação em curso. Não me admirei pois quando ela se graduou com notas máximas e foi convidada para o lugar de assistente e a partir daí rapidamente partiu para uma carreira académica que tem sido brilhante e numa dezena de anos a colocou no patamar do concurso para o título de Professora Catedrática e ao longo da qual acumulou uma meia dúzia de estudos publicados em outros tantos livros e um bom número de pequenos artigos e ensaios estampados em jornais e revistas que lhe configuram uma obra assinalável. Por saber fica sempre o carácter dos filhos, mesmo quando estamos conscientes daquilo que lhes transmitimos em termos de valores e princípios, em aberto fica impreterivelmente a moldagem com que as vicissitudes da vida vão condicionando as possibilidades dos comportamentos individuais e a erosão que estes possam provocar naqueles ou a robustez com que induzem a pessoa a navegar as dificuldades e desafios que se lhe deparem. Pessoalmente estou convencida que se aqueles tijolinhos fundamentais forem bem incutidos, independentemente da personalidade de cada um, não serão as agruras por que passará que os irão alterar e, pelo contrário, será com eles que ele guiará os passos a dar e, nos momentos decisivos, sempre aqueles acabarão por vir ao de cima. E a verdade é que a Raquel que tem o nome da mãe, não foi apenas uma menina inteligente e com um amanhã promissor no que concerne à busca de um ganha pão. Ao mesmo tempo, ela sempre se revelou uma criança educada e prestável, respeitadora do próximo e, mesmo quando parecia estar a ser arrogante pela veemência e convicção com que defendia os seus pontos de vista, algo que, no entanto, não a impedia de reconhecer erros e voltar atrás, pode-se até dizer humilde e solidária. É pois, na minha opinião, isto que explica que esta mulher que está na força da idade e com tudo para ter uma vida regalada para lá do trabalho e que não tendo os compromissos de uma família e vivendo só, bem se poderia dar ao luxo das passeatas e usufrutos do que em termos culturais a cidade de Lisboa, onde reside, tem para oferecer e agora, com a Fundação Calouste Gulbenkian em pleno, já vai apresentando uma variedade significativa e interessante, é pois o seu bom carácter que explica que uma pessoa como ela se disponha e disponibilize para gastar tempo e energias para vir aqui à nossa associação animar sessões de leitura e ministrar cursos no domínio da literatura, naturalmente abertos a qualquer um e que ela prepara e apresenta com o mesmo rigor e exigência com que prepara cada uma das suas aulas, na Faculdade, ou aí orienta uma tese de licenciatura. Bem que ela tinha arcaboiço suficiente para muito simplesmente chegar aqui e debitar o que tivesse que abordar, quanto muito tomar umas notas e fazer um pequeno guião que, pelo menos, lhe servisse para limitar e para que não se perdesse no que houvesse para dizer. Mas o que acontece é que ela não se poupa a esforços e manifestamente não quer ficar por aí, como me confidenciou em certa ocasião, uma vez que não é capaz de pôr de lado a ideia de que ao querermos oferecer algo aos outros, então deveremos certificarmo-nos que em nenhuma circunstância lhes estamos a dar gato por lebre. Por isso se dá ao pormenor de planear adequada e detalhadamente cada sessão, sequer descurando as especificidades de qualquer plateia que seja chamada a enfrentar. Como seria de esperar, estas suas lições são invariavelmente objecto do maior interesse e creio que ao falar por mim posso incluir todos aqueles que ao longo desta mão cheia de anuidades têm assistido a estes seus regressos regulares a este mundo onde nasceu e foi criada. Ora foi isso que voltou a suceder com o curso que ontem terminou a respeito de Raul Brandão que eu praticamente não conhecia e de quem quero agora ler a obra completa, a começar pelas “Memórias” que pura e simplesmente me pareceram ser uma verdadeira delícia.
Mas eu acho que prefiro registar essas notas à parte, talvez amanhã. Neste momento é demasiado tarde para estar a conceder-lhes um início, até pelo facto de nunca saber o que possa vir a sair e o Manuel que tudo indica estar a regressar à normalidade, pois não mais deram sinais as manifestações de indisposições que o incomodaram durante praticamente todo o Verão, mesmo assim o meu amorzinho precisa que lhe dê carinho, muito carinho que é o melhor tónico para o ânimo e este é a melhor muralha e o primeiro recurso que temos à mão para encararmos e respondermos a um problema de saúde, qualquer que ele seja.
E depois é tão doce e confortável dormir enroscada entre os seus braços, sentindo o seu calor crescer em mim.

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