terça-feira, 20 de agosto de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Fiquei francamente fascinada com Raul Brandão. É claro que para isso muito concorreu a clareza e o entusiasmo com que a mestra apresentou o Autor, certeira quanto à beleza e a relevância dos excertos de obras que nos leu e nos fez ler e é tão agradável ouvir ler e então quando é feito com a eloquência e a elegância com que ela o desempenhou e nos levou a desempenhar, cheia de exemplos e ilustrações para nos dar a conhecer e interpretar o escritor e dona de um manancial de cultura histórica não só capaz de situar qualquer acontecimento com precisão, como ainda de, pela vivacidade e riqueza dos seus recursos discursivos, fazer ver aos leigos ambiências mais ou menos exóticas de tempos de antanho. Será pois, em boa parte, ela a responsável pela admiração que senti perante textos que chegam ao ponto da maravilha e o interesse com que fiquei em ler tudo o que escreveu de uma ponta a outra, mas tenho para mim que foi precisamente esta redescoberta que me fez nascer este último desejo e essa, por muita que fosse a magia saída dos dotes da apresentadora, dificilmente aconteceria se o homem não fosse ou não tivesse sido verdadeiramente um poeta que em prosa se expressou para nos dar a conhecer o mundo que viu segundo o seu próprio olhar. Lembro-me de há muitos anos ter lido “Os Pescadores”, já aqui estávamos e de logo nessa altura ter ficado com a impressão de se tratar de uma compilação de pequenos registos admiravelmente belos, com uma linguagem assente numa intensidade poética desconcertante e jamais me esqueci do quão bem o achei como paisagista. Nas páginas sobre Sesimbra reconstruí imagens da infância quando por ali passei com os meus queridos e saudosos pais, identificando os batéis ligeiramente inclinados nos suportes de estacas que os mantinham sobre a espera nas areias e botes e aialas como moscas, ao longe, espalhadas pela ampla concavidade da baía. Também me ficou no ouvido o reparo de alguém, talvez o Artur ou o Félix que tão embevecidos andavam no seu trabalho de recolha de musicalidades antigas e tradicionais, da importância do indivíduo para a própria etnografia portuguesa. É curioso como estas coisas são e se nesses dias distantes não consegui compreender o alcance e a pertinência da observação, vejo agora, depois das brilhantes e enriquecedoras lições que a Raquel nos ministrou, fez-se luz e, para mim, ficou clara a acutilância daquele ponto de vista. Pelo que me foi dado perceber, as “Memórias”, por exemplo, são uma fonte privilegiada de informação a respeito de sítios e da maneira de viver de certas zonas do país, naturalmente com maior relevo para o Porto, onde viveu muitos e bons anos e a região vizinha até Guimarães onde possuía propriedades e onde terá passado inúmeros Verões na companhia de Teixeira de Pascoais de quem, já na idade adulta, se fez grande amigo. Para mim, com a vantagem de não terem sido escritas segundo o olhar e os métodos de rigor e a almejada e pretensa objectividade de um historiador, antes com a emotividade e o envolvimento de quem toma notas pessoais e subjectivas que, reconhecida a honestidade com que foram elaboradas, precisamente lhes conferem esse estatuto de referência incontornável para qualquer trabalho etnográfico ou de carácter historiográfico. E é também aí que ele começa a ser uma pena única no panorama da literatura nacional e eu arriscar-me-ia a dizer, pelo menos, bastante incomum mesmo ao nível mundial. Vista no todo, a sua obra e por muito que o próprio tenha defendido a ideia da obra inacabada, mas, vista no todo, aquela é, no mínimo, muito singular. É que logo naquela altura achei e muito mais reforçado está hoje esse sentimento que o Manuel o descreveu na perfeição quando o apelidou de um autêntico pintor de palavras e também ele apenas leu “Os Pescadores”, aliás, por minha influência, devo acrescentar, pois fui eu que lhe transmiti o gosto que tive em tal leitura. E concordo com o paralelismo que, para o ilustrar, ele estabeleceu entre aquelas pinturas feitas de combinações de frases e alguns dos quadros de Eduardo Viana feitos em Vila do Conde. Não por acaso, nas notas biográficas que a Raquel nos deu a conhecer, lá está a significativa referência à elevada admiração que ele nutria por Columbano que considerava enquanto e como seu mestre. É engraçado que numa das aulas, pois foi de autênticas aulas que se trataram, a Graziela tenha perguntado como se poderia classificar literariamente um escritor tão invulgar, ao que a Raquel respondeu com as suas reservas de estudiosa e perita acerca das veleidades taxionómicas, digamos assim, acabando por, após uma reflexão em voz alta, concluir pela inclassificação dele. Mas agora que pensei várias vezes no assunto, quer-me parecer que afinal o homem até é provavelmente classificável. Se considerarmos o conjunto dos seus livros, não será certamente errado dizer que ele foi um genial cronista do tempo em que viveu e a que assistiu e é aí que tanto reside a sua originalidade quanto a sua grandeza. É pela densidade poética da sua prosa, pelo encanto pictórico das linhas que nos legou, tal como pela sagacidade e argúcia do observador em que se constituiu que ele não foi um cronista qualquer, alguém que muito simplesmente se limitou a deixar registos mais ou menos jornalísticos, mais ou menos antropológicos ou historiográficos sobre aquilo de que falou. Não, ele foi bem mais longe e com a sua arte de escrita, aquilo que ele logrou conseguir foi elevar a crónica ao mais alto plano do género literário que geralmente reservamos para o romance, o conto ou a novela. Foi até isso que no cômputo final mais me impressionou na sua obra que terei que arranjar para ler e em seguida. Infelizmente, é uma lacuna, quer na biblioteca da escola, quer na da associação. A boa notícia é que esta última já está a tratar de colmatá-la.

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