terça-feira, 5 de novembro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



As revoluções devem ser assim e nós estamos a assistir a uma. Múltiplas razões que se debatem, todas elas cheias de razão ou da sua própria razão que, na prática, é o que na verdade se verifica e o caos da desordem que resulta de não haver quem ponha ordem em variados decisores que ditam isto e aquilo anulando ou inutilizando por vezes o que se acabou de propor ou, pior, o que estava e bem, como quem no descuido de uma qualquer euforia, justificada ou não, deita o bebé fora com a água do banho. Para atenuar inquietações, resta pensar que tudo isso será natural, da mesma maneira que a avalanche é inevitável quando se rebentam as paredes de uma barragem. E é isso que se passa neste cantinho ibérico em que, não sei se sonhadoramente, se começa a falar de um socialismo à portuguesa. Mas quem sou eu para falar de sonhos ou nas possibilidades de os concretizar ou ainda na exequibilidade dos mesmos? A sociedade portuguesa atravessa uma ebulição permanente, explodindo por toda a parte de reuniões e comissões disto e daquilo, estalando em manifestações a propósito de tudo e mais alguma coisa e sobretudo reclamando, exigindo e bem lá no fundo, tão simplesmente se quisermos ser apenas humanos e razoáveis, na vulgaridade dos casos com todos os motivos para o fazer que raramente ultrapassam o limite do que é justo. As greves decidem-se e fazem-se com a facilidade de um encontro de sócios num clube qualquer e daí que sejam como papoilas no pousio em que está a desaguar o tecido económico do país. Aqui, neste que permanece um pedaço de paraíso, até nem nos podemos queixar, pois as produções não sofreram, pelo menos até ao momento, qualquer quebra, em uma ou outra área aumentaram e a colocação, o escoamento daquelas tem sido assegurado sem percalços anormais, no que, e isto segundo os companheiros mais entendidos, até fomos ajudados por outros pequenos negócios que ao sabor desta liberdade têm surgido por aí. Nem mesmo quanto ao impacto dos aumentos dos salários podemos dizer que tenhamos sofrido nos dividendos finais, pois conseguimos obter ganhos de produtividade, quer dizer, fomos capazes de reestruturar processos produtivos e com isso alcançámos bons aumentos de produção por hora de trabalho. No entanto, a economia portuguesa parece encravada nesta maré de paralisações e plenários de urgência porque tudo está em causa e tudo importa e a ninguém deixa de dizer respeito. É precisamente esse o meu receio que o tecido produtivo nacional não esteja preparado e não venha a atingir esses saldos positivos de produtividade que permitam acompanhar os índices daquilo que se reivindica. E o estado não se pode alhear dessa economia clandestina que se vai fazendo um pouco por toda a parte e que, apesar de tudo, é ganha-pão para muitos; mas a redistribuição da riqueza faz-se pelos impostos e para isso há que cobrá-los. Não há é como dizer que um aumento que em muitos, eu diria em demasiados casos, mais não é para que se possa passar a ter o leite e o peixe e a carne regulares que perfazem uma alimentação recomendável, certo é que não há como dizer que tais exigências sejam irrealistas ou inadequadas, ou que o salário mínimo não é justo e acertado, para nem chegar a dizer exequível. Depois cabe sempre pensar como se pode pedir que espere a um homem que empobrece a trabalhar tal como é tão banal que suceda no Portugal que o salazarismo nos legou? E também não tenho qualquer fantasia sobre muitas motivações que, na procura de um pretenso igualitarismo, muito simplesmente escondam a baixeza da inveja. Provavelmente também isso fará parte do que é uma revolução, especialmente se, como esta que presenciamos, os rumos que se apontam sejam os do socialismo o que em linguagem simples se resume na ideia de uma sociedade mais justa e equilibrada. Contudo é o que me parece que deriva de muitos dos discursos que se gritam contra os ricos e a riqueza em que chega a parecer que o que mais importa é acabar com os primeiros e destruir a segunda. Nem dando conta que os filhos de qualquer um têm o mesmo direito que os de qualquer outro a usufruir da oportunidade de escolherem um caminho para as suas vidas e de preferência que no mesmo possam colher frutos melhores ou, no limite mínimo, tão bons, quanto aqueles que os trouxeram ao mundo recolheram, ainda que nesse patamar minimalista apenas estivéssemos a conseguir manter os níveis de pobreza de que estamos a partir. A riqueza é o resultado da actividade humana, só é perniciosa se nos deixarmos cegar por ela, se dela fizermos o objectivo primordial ou único da nossa existência, se a virmos como um mecanismo de vida, compreenderemos então que o mais importante será reparti-la, usá-la para que os que têm menos e de uma ou outra forma estão impedidos de a mais almejar, não vejam aos seus filhos, por causa disso, cerceadas as portas das tais possibilidades de singrarem na vida se para tanto tiverem capacidades pessoais. E não estou a pensar no simplismo do reparte comigo a casa que tens para viver ou o pedaço de queijo que tens à mesa, à semelhança do que na última noite se discutiu na comissão de moradores que levou a debate a proposta de uns quantos para que a nossa piscina fosse declarada de livre utilização para qualquer habitante do Vale da Esperança e que, após uma primeira fase em que esse ponto de vista pareceu vencedor, se regozijaram pelo fim dos privilégios burgueses. Prevaleceu o bom senso após uma reviravolta em que a cooperativa teria que construir uma outra piscina ao que o calor da discussão veio acrescentar um pavilhão gimno-desportivo para ficarem a cargo da associação e, por via disso, ao dispor de todos, acabando por se acertar que a comissão lançaria uma pequena mensalidade sobre todas as residências e estabelecimentos comerciais, a partir da qual e da oferta da mão-de-obra de todos, se comprarão os materiais e pagarão as máquinas para que se venha a construir aqueles equipamentos. É nesta redistribuição que estou a pensar, a que assenta no princípio de vou procurar conseguir ao invés do que se contenta que tu não consigas. E não é que já se fizeram contas e já se sabe como liquidar o empréstimo que permitirá realizar aquele empreendimento colectivo? É a prova que a vontade e o engenho dos homens tem muita força, às vezes, tristemente, até demasiada força o que, para nossa alegria, não é este o caso.

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