Uma
das várias navegações que gosto de praticar, é percorrer os trilhos á beira-rio
exercício que, no entanto, se torna cada vez mais difícil concretizar. O
movimento das marés foi corroendo a consistência das muralhas que mãos humanas
construíram, a falta de manutenção permitiu o desfecho, a sua derrocada total.
Sem a barreira de pedra que lhe cortava o fôlego e o fazia estancar, continua o
rio, por mais uns metros, o seu deambular insaciado até se imobilizar no abraço
à terra, sua eterna e insubmissa namorada. E ela acolhe-o enfeitada por salgadeiras,
cardos (que picam mas também dão flor) e outras plantas que ali fizeram a sua
casa e colonizam as zonas húmidas. Namoram ao som do regurgitar dos bivalves
quando as marés baixam e dos gritos e chamamentos das aves do mar que
folclorizam o ambiente. A elegância sumptuosa dos flamingos desliza sobre o
cinzento lodoso e o seu colorido conta-nos que há outros mundos neste mundo que
sentimos mais nosso apenas por nos ser mais próximo. Os trilhos arrastados pelo
correr da maré tornam mais difícil a incursão, mas a recompensa continua a ser imensa
e gratificante. O brilho do sol, o vento no cabelo, o cheiro da maresia, os barcos
típicos sobre as águas que, com arte, bolinam os esteiros, domesticados pelo saber
dos últimos intérpretes da faina, ou por navegantes ocasionais que no ócio
exercitam e cumprem, o fado ou desígnio da alma lusa marinheira.
M. J. Croca
Foto: Edgar Cantante
6 comentários:
Esta tua descrição dos trilhos e do seu percurso à beira-rio é a perfeita síntese duma pequena tela, a que eu chamei "Pastor de Sonhos", executada pouco depois do passeio que o EG fez nas zonas húmidas... Lembras-te?
Vou guardar o texto para memória futura...
Parabéns ao fotógrafo e ao escriba!
Abraço,
António
A tua escrita é de grande riqueza literária. Devias tentar o romance, sem dúvida. Eis o Projeto!
Abraço.
Amigo António como poderia não lembrar essa tarde e as telas em que a fixaste? Essa que referes é mesmo deveras especial. Estão lá muitos sentimentos ou não estivesse cheia de amigos. Começa logo pelo artista que fixou o momento, está a Raúla agonizando e um "pastor de sonhos" (foi assim que lhe chamaste na outra tela do dia não foi?) que se aproxima como que confortando-a. Em silêncio, outros amigos assistem. É obviamente uma tela de que muito gosto então não?
A propósito, temos de agendar outro encontro do Estudo Geral.
Abraço.
Manuel João
Amigo Luís, fico feliz com o teu comentário e sensível à tua sugestão. Vamos a ver se consigo já que estou inclinado a aceitar esse desafio. A seu tempo, talvez.
Temos de agendar outro encontro do EG.
Grande Abraço.
Manuel João
"Uma página por dia, 365 por ano..."
Por exemplo, Luís.
Abraço.
Manuel João
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