O médico e a boneca. Norman Rockwell, 1929
Norman Rockwell Museum, Stockbridge, U.S.A.
Verdades inconvenientes
São tantas que davam para encher vários sacos a transbordar
e ainda ficavam verdades de fora.
Nem vale a pena fazer a listagem, que não há crónica que
aguente, mas hoje não consigo não falar sobre uma verdade inconveniente.
Trata-se da relação médico doente. Está na berra, não há
como não estar na ordem do dia. Os dias ordenam que não se adiem os nossos
dias.
Estive num fim de semana recente numas jornadas sobre saúde
e espiritualidade: alimento de luxo para a minha alma, meu espírito, minha
felicidade. As crenças do meu coração mais antigo encontram ali um eco tal, que
saio destes fins de semana como de um SPA com massagem de chocolate e banho de
perfumes. É chocolate, são perfumes, ventos de amor e consciência.
Os conferencistas são médicos, cirurgiões, enfermeiros,
cientistas: físicos.
Abordam diversas facetas da saúde e mais do que um deles
tratou da relação médico doente, efeito placebo e cura. Referiram várias
experiências científicas que comprovam inequivocamente que o que cura não é o
medicamento, não é propriamente o princípio ativo, mas o mecanismo mental e
emocional do doente que aciona o princípio ativo… quer ele esteja ou não
presente no medicamento. E o mecanismo é, sem dúvida, uma boa relação médico
doente: tempo, atenção, verdade e estímulo, que desencadeia no doente um estado
emocional favorável à cura. Porque quem se cura é sempre o próprio; o médico, o
terapeuta, são facilitadores.
Na verdade, isto retira um grande peso de cima do médico,
do terapeuta. Porque se ele fez o melhor que sabia e mesmo assim não resultou,
se ele fez exatamente o mesmo que ao outro doente que aparentemente se
encontrava num estado muito mais difícil e se salvou, que concluir? Que o
médico, como qualquer cuidador, é “apenas” (e isto não é pouco) um facilitador
de cura. Quem se cura é o próprio, numa ainda relativamente (mas já não
totalmente) misteriosa relação com o princípio curador universal a que não vou
dar um nome porque não o sei e não vou inventar por causa dos equívocos.
Foi sensivelmente isto que a Drª Teresa Gomes Mota
tentou dizer hoje numa entrevista na televisão a propósito do lançamento do seu
livro O Admirável Placebo. Tentou, mas não conseguiu, porque as
perguntas sucediam-se às perguntas como se ali não houvesse espaço para as respostas.
Como se a entrevista apenas tivesse ocorrido para se fazerem perguntas. Cada
vez que a doutora tentava aflorar a questão, afinal central, do placebo, que é
a relação médico doente, o seu discurso era cortado com outra pergunta ou com o
final da entrevista. Muito frustrante.
Acabou por ser uma entrevista banal quando poderíamos tê-la
ouvido referir coisas como estas, que aparecem no seu livro:
“sacralidade do encontro clínico”, “verdade e compaixão”,
“as pessoas têm espaços selados que necessitam de ajuda para abrir”, “melhoram
porque confiam, são escutadas e estimuladas a mudar”.
Conseguiu referir que há casos em que ainda antes de
começarem a tomar o placebo os doentes já registam melhoras, o que prova que
não é a farinha de que se compõe o placebo que cria o efeito, mas também não é
o princípio ativo.
Os físicos dizem o mesmo, que é em nós que tudo se decide,
no nosso pensamento. Os poetas também, lembro Pessoa quando escreve “è em nós
que é tudo”. Os místicos já o vêm dizendo há uns milhares de anos. Mas uma
médica ainda não tem autorização para dizê-lo na televisão. É uma questão de
tempo. A verdade é uma avalanche lenta, mas avança. Inconvenientemente. Para
nossa conveniência.
Risoleta Pinto Pedro
1 comentário:
Tão verdade!
Beijos,
Rui
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