Ceia em Dresden, George Baselitz, 1983 |
UM HOMEM CEGO
Nunca
compreendera muito bem aquela gente. Acabara apenas por se habituar…
A
uma dada altura deu conta de que ali ninguém falava com ele. Se estivesse com o
filho mais novo, era para ele que falavam. Se fosse com a mulher, era a ela que
todos se dirigiam. Até a filha mais velha, habitualmente afável e educada,
detestava responder às perguntas que lhe faziam sobre o pai, como se ele lá não
estivesse. E já algumas vezes tinha até sido desagradável com algumas pessoas,
ignorando-as e fingindo não estar também por ali.
Fora
um processo quase impercetível. Lentamente, sem dar por isso, tinha deixado de
ouvir os outros.
Primeiro
começou a ouvi-los com as vozes todas iguais. As conversas terminavam todas com
as mesmas palavras e estas eram cada vez mais ditas e menos compreendidas.
Depois, as vozes afastaram-se completamente e passou apenas a ouvir o resto.
Com
o tempo, ele acabara por pensar existir apenas em casa.
Na
rua acontecia-lhe ninguém, mas não havia silêncio. Apenas as vozes sem gente
lhe chegavam misturadas e longínquas. Mas em casa, mesmo nas ausências havia
quem lhe falasse. As suas mãos tornavam-se aptas e voltava a existir. Ouvia
como ninguém… e até os silêncios tinham palavras doces e cheias.
Tornava-se
capaz.
E
sabia-nos a todos de memória.
Podia
pensar nos filhos e resolver todos os seus problemas, arrumar o sótão porque já
há muito que ninguém lá ia e acontecia-lhe até saber afinar, só de ouvido, o
motor do jipe.
Nas
sobras dos dias, fazia brinquedos de madeira em máquinas de corte onde nunca me
deixou mexer, não fosse eu magoar-me.
Na
rua, era somente um homem cego que ninguém conseguia ver.
Teresa
Bondoso
2 comentários:
Bom dia Teresa e António!
Que saudades dos contos da Teresa. Muito bem escrito, como sempre e muito menos surreal do que à primeira vista possa parecer, não é? Acho eu, que também acho que não existimos para além da nossa 'casa', que poderá ser um circulo mais ou menos alargado - depende de cada um de nós.
Em todo o caso, fez-me vir à memória aquele nosso hábito de crianças, de fechar os olhos para que não nos vissem, naquele acreditar infantil de que o que não vimos também não nos vê a nós. Às vezes dava um certo jeito :)
Beijos aos dois e uma boa semana!
Amélia
Ninguém resiste a lutar contra todas as injustiças que vão acontecendo com nosso conhecimento. Depois de muitas lutas, temos de desistir de algumas... para bem da nossa sanidade mental. Há sempre uma linha vermelha... Que não seja como a do outro, o irrevogável...
Beijo,
António
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