segunda-feira, 11 de novembro de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (54)

Ceia em Dresden, George Baselitz, 1983


UM HOMEM CEGO

Nunca compreendera muito bem aquela gente. Acabara apenas por se habituar…

A uma dada altura deu conta de que ali ninguém falava com ele. Se estivesse com o filho mais novo, era para ele que falavam. Se fosse com a mulher, era a ela que todos se dirigiam. Até a filha mais velha, habitualmente afável e educada, detestava responder às perguntas que lhe faziam sobre o pai, como se ele lá não estivesse. E já algumas vezes tinha até sido desagradável com algumas pessoas, ignorando-as e fingindo não estar também por ali.

Fora um processo quase impercetível. Lentamente, sem dar por isso, tinha deixado de ouvir os outros.
Primeiro começou a ouvi-los com as vozes todas iguais. As conversas terminavam todas com as mesmas palavras e estas eram cada vez mais ditas e menos compreendidas. Depois, as vozes afastaram-se completamente e passou apenas a ouvir o resto.
Com o tempo, ele acabara por pensar existir apenas em casa.
Na rua acontecia-lhe ninguém, mas não havia silêncio. Apenas as vozes sem gente lhe chegavam misturadas e longínquas. Mas em casa, mesmo nas ausências havia quem lhe falasse. As suas mãos tornavam-se aptas e voltava a existir. Ouvia como ninguém… e até os silêncios tinham palavras doces e cheias.
Tornava-se capaz.
E sabia-nos a todos de memória.
Podia pensar nos filhos e resolver todos os seus problemas, arrumar o sótão porque já há muito que ninguém lá ia e acontecia-lhe até saber afinar, só de ouvido, o motor do jipe.
Nas sobras dos dias, fazia brinquedos de madeira em máquinas de corte onde nunca me deixou mexer, não fosse eu magoar-me.

Na rua, era somente um homem cego que ninguém conseguia ver.


Teresa Bondoso


2 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom dia Teresa e António!

Que saudades dos contos da Teresa. Muito bem escrito, como sempre e muito menos surreal do que à primeira vista possa parecer, não é? Acho eu, que também acho que não existimos para além da nossa 'casa', que poderá ser um circulo mais ou menos alargado - depende de cada um de nós.
Em todo o caso, fez-me vir à memória aquele nosso hábito de crianças, de fechar os olhos para que não nos vissem, naquele acreditar infantil de que o que não vimos também não nos vê a nós. Às vezes dava um certo jeito :)

Beijos aos dois e uma boa semana!
Amélia

A.Tapadinhas disse...

Ninguém resiste a lutar contra todas as injustiças que vão acontecendo com nosso conhecimento. Depois de muitas lutas, temos de desistir de algumas... para bem da nossa sanidade mental. Há sempre uma linha vermelha... Que não seja como a do outro, o irrevogável...

Beijo,
António