sábado, 16 de novembro de 2013

Milagres


«A prática devocional nada mais é do que servir os outros. Nada tem a ver com desfiar o terço, com a reza ou com o hábito»
                           Saadi
                           (Versão portuguesa de Abdul Cadre)


Recuso-me a fazer parte dos supersticiosos que, quando estão gravemente doentes, vão ao médico e vão a Fátima: se se curam, foi milagre, se pioram é negligência médica. Mas, em boa verdade e sem falsa modéstia, não sei nem poderia saber se há ou se não há milagres, mas se os houver, então o Cosmos é bem mais iníquo do que o imaginam os azedos e os pessimistas.
Ora, os crédulos e sobretudo aqueles que o sendo ou não sendo lucram com haver crédulos, querem fazer crer aos que não são uma coisa nem outra que um Deus de humores variáveis e instável disposição altera as regras estabelecidas de acordo com a cara do freguês e com as pedinchices e os empenhos metidos aos deuses menores, que são os santinhos de altar, tidos como mediadores seguros destas coisas. Neste politeísmo vulgar, anacrónico e abstruso, a gente reza um qualquer responso, acende umas velas e é trigo limpo: de imediato as coisas em vez de caírem para baixo passam a cair para cima.
Bom, isto é a modos como antigamente – lembram-se? – quando íamos a uma repartição e metíamos uma verdinha na mão do funcionário: «trate lá da coisa que eu não me esqueço de si». Bendita cunha!
Milagres? Que heresia!
A arbitrariedade, o nepotismo, o favorzinho transportados para a credulidade e a superstição constroem a insustentável crença num Deus caprichoso e subornável, confundível com um qualquer pequeno ou grande ditador, mesmo que na figura mínima de um simples manga-de-alpaca.
 E há até – vejam bem! – os crentes de milagres do avesso, que são as desgraças e as catástrofes. Nestes casos, a cunha é para que se safem os que pedincham; o mal dos outros, sendo ou não castigo merecido por pecados cometidos, é com toda a certeza a vontade de Deus, que poderá estar a escrever direito por linhas tortas.
Assim – e espero que assim não seja – entre o Deus das cunhas e o Diabo sedutor haja malvado que escolha e esperto que lucre…
A minha escolha é que por mais que à minha volta aconteçam coisas maravilhosas e inexplicáveis, não as tentarei entender pelo recurso à minha ignorância, antes procurarei encontrar as razões, as causas e as leis propiciatórias das maravilhas, tendo em vista salvá-las do capricho, da arbitrariedade e inclusive do acaso.

ABDUL CADRE
 http://acverruma.blogspot.pt/

NB:
Saadi é o pseudónimo do grande poeta persa do século XIII Musharrif Od-Dîn Sa'adi


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