O trabalho é a fonte da riqueza, sustentam os economistas e do ponto de vista da moral pode ser encarado como um dos olhos de água de que brota a dignidade dos homens, pois é dele que retiram o sustento e, com ele, a possibilidade de cuidarem de si e dos seus e de prevenirem o que importa para que num balanço final possam dizer que por eles nenhum mal ou fardo vieram ao mundo que será o mínimo que sempre caracteriza cada uma destas nossas passagens pela existência que não tenham sido em vão. É por isso que se trata de uma autêntica desgraça todo e qualquer cenário em que, pelo uso daquela força, mais não resulta que a miséria, a permanência na pobreza de ter e haver, em que regularmente se propaga a do ser que se lhe junta, como se nem a todos fosse merecido esse direito natural à dignidade que só o próprio poderá estiolar pelas consequências do seu comportamento. Assim justificando que o reconhecimento do seu valor e importância seja matéria dos contornos em que se desenha a justiça social e com isso, sem que se sacralize esse factor tão decisivo para a Humanidade, se coloque o mesmo como o vértice primordial das relações económicas, o que é dizer que seja a partir da adequada valoração daquele que deverá ser pensada e organizada a actividade económica. Em linguagem simplificada, estamos no domínio da mais rasteira justiça social quando defendemos que aqueles que trabalham – é óbvio que estou a colocar o assunto em termos genéricos e que por isso salvaguardo para juízo de avaliação aqueles que são mandriões e dolosamente displicentes e desastrados, como amiúde aparece na qualidade de objecção nas conversetas que se vão tendo à mesa do café – merecem uma remuneração que lhes permita viver com dignidade, diria até com toda a dignidade. Ah que saudades que eu tenho do paizinho e da mãezinha que muitas vezes comungavam horas de diálogos em torno destes temas em que o meu querido pai gostava tanto de reflectir, nas horas de refúgio dos seus doentes e das preocupações que lhe davam e que depois, como quem põe ordem ao pensamento, adorava expor à atenção e argúcia da mãezinha que, por sua vez, se encontrava no seu papel de examinador e balança da robustez daquelas ideias que apesar de todo o comedimento de uma vida de recato, eu tenho a certeza que também a ela empolgavam. Como eles gostariam de testemunhar este laboratório de sociedades em que estamos verdadeiramente a viver, perante o que seguramente ele reforçaria as suas opiniões a respeito da indignidade da miséria forçada e a imoralidade de quem para tanto contribui. Era o paizinho que dizia que ao assimilarmos o trabalho ao ponto central e fulcral da actividade económica, estamos a colocá-lo no cerne do problema, estamos a afirmar que ele está antes daquela e que é para o dignificar que aquela deve ser organizada e a isso chamava ele as bases de um mundo justo. Como julgar então as ocupações de terras que um pouco por todo o Sul têm decorrido nestas últimas semanas? Como explicar àqueles que nos contam histórias de fome e impotência que há outras maneiras de alcançarem essa tal dignificação que, de geração em geração, lhes tem sido negada? Não por acaso, aqui não houve a mais leve tentativa de apropriação da mais pequena parcela de terreno agrícola ou, tão só, qualquer forma de repartição daquela pelos trabalhadores rurais que aqui laboram todo o ano, nem naqueles mais ou menos trinta hectares que sempre deixámos selvagens lá para os lados dos penedos do rio e onde quem reina são os bichos que põem e dispõem da floresta brava que lhes é dada. Está certo que essas propriedades tenham sido objecto da reivindicação da terra a quem trabalha? Não, não está, apesar de tudo existe a noção de propriedade privada e, por muito que se diga, eram aquelas pertença de alguém. Em face das leis vigentes, nem há como escapar a que estamos perante actos ilícitos, actos meramente ilegais e, como tal, passíveis de procedimento judicial. Para que a partilha da terra possa ser feita com um mínimo de justiça, se bem que não seja isso que resulta dos processos de colectivização que estamos a presenciar pois, o que vemos, o que se vislumbra é a formação de cooperativas, há quem fale de unidades colectivas de produção, coisa que não sei o que seja, contudo, para que em tudo isso haja algum sentido de justiça, alguma outra forma deveria ser encontrada para que se não tivesse que reparar uma injustiça com outra injustiça. Temos pois assim duas injustiças em conflito e não me parece que o caminho mais aconselhável seja optar por uma delas ou, se quisermos, resignar-nos a termos que apenas escolher entre uma e outra, mesmo que seja aquela que nos pareça menor. Mas do ponto de vista de uma condenação moral, como estigmatizar aqueles que bem lá no fundo tão só estão a lutar por um pouco mais de pão? Poderá alguém apontar-lhes o dedo e chamar-lhes nada mais que criminosos? Sem estar a desculpabilizar o erro, esta é uma das situações em que é relevante ter os condicionalismos em conta e por fim não há como pormos um pensamento ético de parte.
Nós aqui é que parecemos ter sido elevados a um caso de estudo por causa de tudo isso. Sinceramente não gosto de muitos dos que têm por aí aparecido para verem e aprenderem com o nosso exemplo, donos de uma arrogância de meter o nariz em tudo o que é sítio e cheios de esquemas de perguntas em que a sensação com que ficamos é a de estarmos a ser avaliados pelos cânones de uma cartilha em que depois se verá se somos bons ou maus, se estamos ou não em conformidade com o que deve ou deverá ser o socialismo nos campos. São, no dizer do Manuel, os comissários políticos que mais do que aprender o que quer que seja, por aqui aparecem em busca das suas próprias certezas ou daquilo que as possa pôr em dúvida para que em resposta, em caso de dúvida, possam exterminar um tal abcesso reaccionário. Seja como for, também com eles aqui temos recebido os rostos simples e as mãos grosseiras que os acompanham e que nos olham de espanto quando confirmamos que aqui vivemos há trinta e quatro anos e tudo aquilo que veem foi construído pela obra e engenho de todos, colectivamente organizados, como dizem os ideólogos e sem zaragatas porque um quer uma parte maior do que a dos outros, como me fez precisar uma mulher a quem acima de tudo, esbugalhou que o Manuel se tenha levantado da mesa e arrumado a cozinha, enquanto eu a iria acompanhar para que fizesse uma visita guiada à escola de adultos que, hoje em dia, por já só ser necessária para uma mão cheia de retardatários da alfabetização, apenas funciona no âmbito da associação cultural. Mas também aparecem curiosos que nos olham com um misto da ternura de quem está num jardim zoológico e da veneração de quem visita algo sagrado. E para que a sensação de macaquinho se agigante, até temos por aí um antropólogo inglês que nos escolheu para estudar um exemplo daquilo a que chamou uma aldeia colectiva. É o que a revolução está a fazer de nós, mesmo contra a vontade de todos.
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