sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Livros d'África





JOÃO NOGUEIRA GARCIA (1926 – 2006)

Nasceu em Vila Nova do Ceira, perto de Coimbra. Em 1948 partiu para Angola vindo a tornar-se, no ano seguinte, um dos fundadores da vila do Quitexe (a sua casa foi a terceira a ser construída). Casou-se em 1951 e foi no Quitexe que nasceram os quatro filhos do casal.
Infelizmente esta localidade viria a ser fortemente atingida pelas mortandades perpetradas pela UPA – União dos Povos de Angola, que tiveram início em 15 de Março de 1961.
Sobre os acontecimentos vividos naqueles dias trágicos deixa-nos um livro, uma Edição de Autor de 2003, intitulado “QUITEXE 61 - UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA”. É um registo cru, sem grandes rasgos literários mas com um profundo sentido humanista.

“No percurso, perto da fazenda do Matos Vaz um casal de nativos, ela com um bebé atado às costas, caminha pela berma da estrada. De uma carrinha alguém dispara e mata o casal. Eu, que vou noutra carrinha, mais atrás, vejo horrorizado o bebé rastejando por cima do corpo da mãe já morta. O motorista não pára e ninguém grita… A morte sobrepõe-se à vida!
Oh maldição do tempo em que vivemos! Onde está Deus que não vê isto?”

Viveram-se momentos tensos e perigosos: “Ao Quitexe começam a afluir as mulheres e crianças brancas de todas as fazendas”, que serão mais tarde evacuadas para o hotel do Uíge. Aí as condições eram as piores: “Os homens tinham ficado no Quitexe. Esgotada a possibilidade de defesa vou à loja do Ferreira Lima buscar uma dezena de catanas que distribuo pelos quartos. Com os poucos homens organiza-se uma defesa simbólica com duas pistolitas e duas catanas. (…) A meia-noite aproxima-se e então começo a ver e ouvir vultos que se aproximam, subindo a rua das traseiras do hotel:
- MATA! MATA! UPA! UPA!”

Não se pense, contudo, que se trata de uma obra facciosa, como tantas outras há. A visão do Autor é equilibrada, sabendo analisar os diferendos entre as partes em contenda como, aliás, se pode extrair do título do livro. Deve-se isto, sem dúvida, ao facto de ser um homem com pensamento de matriz democrática (foi apoiante activo de Arlindo Vicente e de Humberto Delgado o que lhe valeria, desde então, uma vigilância apertada por parte da PIDE…).

Numa carta escrita a uma tia a viver em Portugal, já previa o que não tardaria a chegar, referindo-se então aos acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961: “(…) Em Luanda parece que os encontros têm sido renhidos e que já houve centenas de mortes, mas mesmo por lá, por enquanto, parece que os ataques são só dirigidos contra a polícia e o exército e que das forças revoltadas fazem parte brancos. Seria uma sorte, pois se vamos para a questão racial será uma desgraça, pois será o caso de mata que é branco e mata que é preto. Mas parece-me que não teremos sorte pois esses cavalheiros daí, para salvarem a pele, não hesitarão em nos sacrificarem.”

Houve episódios que João Garcia não conseguiu contar, por pudor e por respeito à dignidade humana, embora consigamos adivinhá-los entre linhas. Mas ficará sempre, na leitura desta obra desenvolvida em 111 páginas, uma visão diferente sobre aqueles trágicos acontecimentos de Março de 1961 que ceifaram vidas e destruíram sonhos, mas que aceleraram o processo inevitável da independência de Angola.


Tomás Lima Coelho

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