Ora aqui está o que pode ser apresentada como uma excelente reunião cívica pelo interessantíssimo debate que proporcionou e a fartura, não será exagerado dizê-lo, de ensinamentos que aí nos foi dada obter. Só isso salvou os incómodos de uma sala apertada para tanta gente que, pela combinação do calor e das nuvens de fumo que pelo ricochete no tecto se abatiam sobre a respiração dos presentes, por fim, nem pelo efeito de portas e janelas escancaradas, não deixou de parecer como uma qualquer espécie de forno fabril onde a permanência facilmente chega a ser dolorosa. Ontem, ao serão, na sala de espectáculos da associação, decorreu um encontro de moradores em que esteve em apreço a relação da comunidade com os animais domésticos, mormente os cães e os gatos que vieram a encontrar-se no centro do problema. Há algumas semanas que tinham surgido críticas e reparos em alguns artigos do jornal de parede, em que se punha em causa o comportamento dos donos que deixando os bichos à vontade pelas vias e espaços públicos do lugar, acabam por ser responsáveis pela conspurcação da higiene dos passeios e asfaltos, nem a isso escapando relvados e canteiros dos ajardinamentos, cheios dos medalhões que a fisiologia animal obrigatoriamente tem que depositar em algum lado e, no caso dos chamados seres irracionais, a menos que alguém o previna, inevitavelmente desaguam nos chãos por onde todos caminham. Pois foi isso que incomodou várias pessoas que acabaram por solicitar uma assembleia para discutir o assunto que a comissão de moradores tratou de realizar. De um lado estiveram esses que muito frontalmente questionaram o direito de termos bicharada de estimação se para isso não formos capazes de os tratar convenientemente e, por consequência disso, deixarmos que os mesmos sejam uma fonte de aborrecimentos e desagrados para os restantes vizinhos. É claro que do lado oposto estiveram aqueles que tomaram isso como um dos atributos da liberdade de cada um decidir ter ou não em casa um animal de companhia; e depois como alguns logo lembraram, importando ter em consideração o quanto aqueles são necessários, quer no caso dos cães, por funcionarem como elementos de alerta num local que, apesar de tudo, é ermo, quer no que diz respeito aos gatos, por serem a forma mais natural de se combaterem as expansões de indesejadas populações de roedores e até outras pragas de todo inconvenientes tanto para o aglomerado habitacional, como para os campos de cultivo adjacentes. Bem, como uma rapariga explicou com uma clareza e precisão que não deixaram margem para dúvidas, é mais que compatível a permanência de tais funcionalidades manifestamente positivas, com os cuidados para que os quadrúpedes se alimentem e resolvam as restantes necessidades inerentes às respectivas biologias, sem que daí advenham estragos e o emporcalhamento das calçadas públicas. Ainda mais aqui, como defendeu um outro senhor, onde todos têm quintal. Com efeito, são suficientes medidas tão simples como manter os canídeos encerrados ou presos naqueles logradouros e, quando os trazemos à rua, estarmos precavidos com a trela que os mantém sob o nosso próprio controlo ou, se a intenção é possibilitar-lhes os seus próprios momentos ao sabor da vontade de cada um deles, coisa que está ao alcance de qualquer um de nós, evitar que isso aconteça no povoado, procurando soltá-los por esses trilhos do matagal que nos envolve, onde o impacto daquelas vidas acaba por ser enquadrado e tratado pelos próprios ciclos da Natureza. Não é sem alguma vergonha que me vejo forçada a registar que nunca tinha considerado esta problemática a partir de uma óptica como esta e, pior, a nenhum de nós e aqui incluo os meus filhos que anos a fio deram o seu contributo negativo para esta situação, jamais ocorreu pensar ser esse um comportamento que, se quisermos ser frios e isentos no juízo e evitarmos eufemismos no dizer, poderemos classificar como anti-sociais. No entanto não custa muito perceber a pertinência daqueles pontos de vista, como igualmente é fácil de entender que os gatos, esses, até nem são muito ariscos de se habituarem a um determinado ponto particular para aí se desembaraçarem das excrescências do seu metabolismo. E foi sobre esses pormenores que principalmente se conversou e a conclusão final foi ao encontro dos reclamantes, ao ficar aceite e estabelecido que os maus tratos ao espaço comum nunca podem ser vistos como um direito de quem quer que seja, antes pelo contrário, sendo dever de todos zelarem para que das suas atitudes individuais não derivem beliscaduras naquele. E faz todo o sentido que assim seja. Teremos nós a liberdade para privarmos o outro da liberdade de andar de cabeça levantada pelos passeios, sem ter que se preocupar onde põe os pés para que não suje os sapatos? Poderá a liberdade ser essa vontade desenfreada de não atender às consequências dos actos? Não, não pode e não por essa vulgata que pretende que a minha liberdade acaba onde começa a do meu semelhante, coisa que apenas significa nada pois seria de conflito permanente e provavelmente sem tréguas um universo que desse modo se quisesse alicerçar. Antes por aquela se fundamentar no reconhecimento que os limites – porque ela não é, em circunstância alguma o poderia ser, ilimitada – se estabelecem e encontram na minha consciência individual que determinam que não posso prejudicar os outros pois, afinal, se na sua forma mais simples é aquela a possibilidade de que uma qualquer pessoa deve dispor para escolher um caminho, implica necessariamente a responsabilidade de o fazermos sem que para tanto tenhamos que espezinhar quem quer que seja, além do que, só por esse princípio de auto-controlo poderemos pacificamente regular a nossa vida em sociedade, pelo que devemos antes afirmar que a minha liberdade não finda onde começa a do vizinho, muito para cá disso, a minha liberdade, seja sob que pretexto for, sequer pode conter a possibilidade –usar a palavra direito, aqui, já é para mim uma desonestidade intelectual – de prejudicar qualquer outro ser humano e eu até me atrevo a defender que poderíamos muito bem acrescentar qualquer outro ser vivo em geral. Mas esta é perspectiva que, por ora, permanece no âmbito da controvérsia. Justifica-se então que eu tenha votado favoravelmente a proposta final que, depois de prever e lançar a preparação de toda a formação básica para que a ninguém seja dado alegar que não sabe ou não tem como saber lidar com o problema, prevê o agravamento das taxas de residência que financiarão a construção de alguns equipamentos sociais, para todos aqueles que prevariquem nestes domínios e isto sob a pena de verem as rendas aumentadas e, em última instância, despejados das casas onde vivem. Isto podem parecer atitudes e medidas draconianas, pelo menos foi dessa forma que um dos oponentes se expressou na sua declaração de voto vencido, contudo, como disse um dos presentes e nem mesmo foi em resposta àquela declaração de protesto, chamemos-lhe assim, quem não sabe viver com os outros que vá viver sozinho para o meio do mato.
“A liberdade está a passar por aqui.” Sérgio Godinho dixit.
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