terça-feira, 11 de março de 2014

Alhos Vedros, 500 anos de Foral



Álvaro Velho, o cronista da Viagem  de Vasco da Gama à Índia

por Luís Santos


D. Manuel I, o décimo quarto rei de Portugal, foi entronizado em 1495 e seguiu a política expansionista do seu antecessor. De tal forma que, dois anos depois, no dia 8 de Julho de 1497 Vasco da Gama estava de partida para a Índia, tal como, pouco tempo depois, no dia 9 de Março de 1500, Pedro Álvares Cabral partia para aquela que acabou por ser a Viagem da Descoberta do Brasil.

Entre todo esse imenso Projeto que foi a Expansão Ultramarina Portuguesa, a descoberta dos caminhos marítimos para a Índia e Brasil, constituíram-se como acontecimentos de enormíssima importância à escala planetária. O comércio, a economia, a geografia, os conhecimentos náuticos, o desenvolvimento social e cultural, ganharam um incremento tal que abriram novas infinitas possibilidades ao mundo.

A chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, por exemplo, foi uma das primeiras vezes em que se registaram contactos entre os povos europeus e as populações ameríndias, porque até ao tempo o Atlântico erguia-se como uma barreira intransponível. A magnífica Carta do cronista Pero Vaz de Caminha, onde se dá a notícia ao rei D. Manuel do Achamento da Terra do Brasil, descrevendo esses primeiros contactos com as populações índias, os seus modos de vida, os seus hábitos culturais, constitui um testemunho ímpar da história da humanidade.

Da mesma forma o faz Álvaro Velho, o pressuposto cronista que vai com a frota de Vasco da Gama à Índia e que narra pormenorizadamente todos os acontecimentos que foram acontecendo aos nautas pelo caminho, os fenómenos naturais, as terras, os povos, os costumes. Uma Viagem de ida e volta que demoraria dois anos, pois que a saída do Restelo, Lisboa, deu-se a 8 de Julho de 1497 e a chegada a 10 de Julho de 1499. O aportamento na Índia, em Calecute, aconteceu no dia 8 de Maio de 1498, o que significa dizer que foram precisos mais de dez meses de viagem por mar, tamanho era o tempo necessário para o precioso intercâmbio comercial com o oriente. Se compararmos este facto com a facilidade de mobilidade que temos atualmente, não podemos deixar de pensar nas múltiplas formas como as coisas mudaram nestes últimos 500 anos.

Posto isto, contextualizado que está o assunto, iremos reter agora a nossa atenção entre esse marco fundamental da história de Portugal, a Viagem de Vasco da Gama à Índia, e as suas importantes relações com a história local.

Dizer desde logo que, Álvaro Velho o autor do diário de bordo “Roteiro da Índia”, pois que assim se chama o texto que nos é legado, era natural do Barreiro, na altura um lugar que pertencia ao Concelho de Alhos Vedros. Como é sabido, o Barreiro é um dos filhos de primeira geração do Concelho de Alhos Vedros, do qual viria a autonomizar-se em 1521 através de Carta de Foral atribuída pelo rei D. Manuel I. Muito se poderá dizer sobre as longas e profícuas relações entre estes dois lugares no curso da história do país, dada a sua intemporal relação de vizinhança, mas a isso voltaremos mais tarde.

Sobre Álvaro Velho, ao que sabemos, não existem muitas informações sobre a sua vida. Sabe-se que viveu entre os séculos XV e XVI, um marinheiro, cronista, que foi com Vasco da Gama à Índia e que na viagem de regresso “deve ter desembarcado na Guiné, onde terá ficado por qualquer razão imprevista. Na verdade o Roteiro termina bruscamente no dia em que atingem os Baixos do Rio Grande, e posteriormente há notícias dum Álvaro Velho na costa da Serra Leoa, onde parece ter estado durante oito anos. Escreveu, além deste Roteiro, uma Descrição da costa ao sul do rio da Gâmbia, uma Relação dos Reinos ao sul de Calecut e um Vocabulário malaio. O Roteiro foi publicado pela primeira vez em 1838, tendo sido seguidamente traduzido para francês, inglês e alemão.” (*)

Para terminar, e por curiosidade, diremos que no Campeonato Europeu de Futebol que se realizou em Portugal em 2004, a bola do jogo foi batizada com o nome de “Roteiro”, justamente em homenagem à crónica escrita por Álvaro Velho mais de 500 anos antes.

                                                            *            *           *

Deixamos aqui algumas das preciosas descrições de Álvaro Velho nesse seu Roteiro(**) sobre alguns dos episódios cruciais da Viagem de Vasco da Gama:

- 8 de Julho (1947), partida do Restelo, “nosso caminho, que Deus Nosso Senhor deixe acabar em seu serviço. Amém.” (p.19)

- 15 de Julho, ao largo das Ilhas Canárias “onde fizemos pescaria obra de duas horas, e logo esta noite, em anoitecendo, éramos através do Rio do Oiro (atual Saara Ocidental).” (p.19)

- 4 de Novembro, baía de Santa Helena (porto natural na costa atlântica da África do Sul). “Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos-marinhos e baleias, e carne de gazelas, e raízes de ervas; e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas.” (p.21)

-9 de Dezembro, Cabo da Boa Esperança (“o mítico Adamastor”, passagem do oceano Atlântico para o Índico).”…a derradeira terra que Bartolomeu Dias descobriu ” (p.28)

- 11 de Janeiro (1948), “…houvemos visto um rio pequeno e aqui pousámos ao longo da costa (…) Esta terra, segundo nos pareceu, é muito povoada e há nela muitos senhores; e as mulheres nos parecem que eram mais que os homens, porque onde vinham 20 homens, vinham 40 mulheres. E as casa desta terra são de palha; e as armas desta gente são arcos muito grandes, e flechas e azagaias de ferro. E há nesta terra, segundo nos pareceu, muito cobre, o qual trazem nas pernas e pelos braços e pelos cabelos retorcidos (…) há nesta terra estanho, que eles trazem numas guarnições de punhais; e as bainhas são de marfim (…) Esta gente é negra, e são homens de bons corpos; andam nus, somente trazem uns panos de algodão pequenos com que cobrem suas vergonhas…” (pp. 29-31)

- 2 de Março, “Mais nos disseram que Preste João estava dali perto; e que tinha muitas cidades ao longo do mar, e que os moradores delas eram grandes mercadores e tinham grandes naus. Mas o Preste João estava muito dentro pelo sertão, e que não podiam lá ir senão em camelos; os quais mouros traziam aqui dois cristãos índios cativos (…) Em este lugar e ilha, a que chamam Moçambique (…) E depois que souberam que nós éramos cristãos, ordenaram de nos tomarem e matarem à traição…” (pp.34 e 36)

- 8 de Abril, “Ao Domingo de Ramos mandou o rei de Mombaça (Quénia) ao capitão-mor um carneiro, e muitas laranjas e cidrões, e canas-de-açúcar, e mandou-lhe um anel por seguro (…) E o capitão-mor lhe mandou um ramal de corais, e mandou-lhe dizer ao outro dia iria para dentro. E, em este dia mesmo, ficaram no navio do capitão quatro mouros dos mais honrados (…) E, depois de tudo isto, o rei mandou amostras de cravo, e pimenta, e gengibre, e de trigo tremês ao capitão, e que isto poderíamos carregar.” (pp.42 e 43)

- 18 de Maio, Calecute (Índia), “Esta cidade de Calecut é de cristãos, os quais são homens baços. E andam deles com barbas grandes e os cabelos da cabeça compridos, e outros trazem as cabeças rapadas e outros tosquiadas; e trazem em a moleira uns topetes, por sinal que são cristãos; e nas barbas bigodes. E trazem as orelhas furadas, e nos buracos delas muito oiro. E andam nus da cinta para cima, e para baixo trazem uns panos de algodão muito delgados; e estes que assim andam vestidos são os mais honrados, que os outros trajam-se como podem. As mulheres desta terra, em geral, são feias e de pequenos corpos. E trazem ao pescoço muitas jóias de oiro, e pelos braços muitas manilhas, e nos dedos dos pés trazem anéis com pedras ricas.” (p.51)

- 5 de Outubro, (Viagem de regresso a Portugal) “Andámos tanto tempo em esta travessia, que três meses menos três dias gastámos nela; isto com muitas calmarias e ventos contrários, que em ela achámos, de maneira que nos adoeceu toda a gente das gengivas, que lhes cresciam sobre os dentes em tal maneira que não podiam comer; e isso mesmo lhes inchava as pernas, e grandes outros inchaços pelo corpo, de guisa que lavravam um homem tanto que morria sem ter outra nenhuma doença. Da qual nos morreram em o dito tempo 30 homens, afora outros tantos que já eram mortos; e os que navegavam, em cada nau, seriam 7 ou 8 homens, e estes não eram ainda sãos como haviam de ser. Do que vos afirmo que se nos mais durara aquele tempo quinze dias, andarmos por esse mar través, que não houvera quem navegara os navios…” (p.81)

- 25 de Abril (1499), “…E os pilotos diziam que éramos nos baixos do Rio Grande (Guiné)” (p.85), frase com que subitamente termina o Roteiro, ficando por descrever por razões já apontadas o resto da Viagem entre a Guiné e Portugal, embora como se percebe o mais importante já estivesse dito.

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(*) FONSECA, Branquinho, As Grandes Viagens Portuguesas, Manuscrito Editores, Sintra, 1984, p.18


(**) VELHO, Álvaro, Roteiro da Viagem Que Em Descobrimento da Índia Pelo Cabo da Boa Esperança Fez Dom Vasco da Gama, in obra citada.


6 comentários:

MJC disse...


Esta sequência de crónicas vem-nos encantando e a gente permite que o prazer se demore porque percebe que a coisa é para continuar.

Melhor do que uma bica e um bagaço (do bom) a seguir a um generoso jantar é ter uma crónica destas - dos 500 anos do foral - a acompanhar.

Amigo Luís, siga a banda que o barco gosta do mar e a malta de aprender, que é como quem diz, de navegar nessa viagem.

Abraço.

Manuel João

luis santos disse...


O en-cantamento é mutuo. Há que manter o instrumento pronto e afinado para que a orquestra possa tocar. Ou como dizia o outro, quando o músico está pronto, o maestro está pronto também. Portanto, nada mais simples, há que não faltar aos ensaios, e siga a música. Abraço, claro.

A.Tapadinhas disse...

Viagem de encanto...

...e, mesmo para marinheiros de água doce, sem efeitos secundários:

-não enjoa!

Abraço,
António

luis santos disse...


Tal e qual na Ilha dos Amores. Parabéns para ti também. Abraço.

Gil disse...

E cá vamos continuando na trilha das celebrações dos 500 anos de Foral, ao mesmo tempo que nos brindas com histórias da nossa História!

Obrigada!

luis santos disse...


Igualmente agradecido Fernanda pela força certa no momento certo.