Álvaro Velho, o cronista da Viagem de Vasco da Gama à Índia
por Luís Santos
D. Manuel I, o décimo quarto rei de Portugal, foi entronizado em 1495 e seguiu a política expansionista do seu antecessor. De tal forma que, dois anos depois, no dia 8 de Julho de 1497 Vasco da Gama estava de partida para a Índia, tal como, pouco tempo depois, no dia 9 de Março de 1500, Pedro Álvares Cabral partia para aquela que acabou por ser a Viagem da Descoberta do Brasil.
Entre todo esse imenso Projeto
que foi a Expansão Ultramarina Portuguesa, a descoberta dos caminhos marítimos
para a Índia e Brasil, constituíram-se como acontecimentos de enormíssima importância
à escala planetária. O comércio, a economia, a geografia, os conhecimentos
náuticos, o desenvolvimento social e cultural, ganharam um incremento tal que
abriram novas infinitas possibilidades ao mundo.
A chegada de Pedro Álvares Cabral
ao Brasil, por exemplo, foi uma das primeiras vezes em que se registaram
contactos entre os povos europeus e as populações ameríndias, porque até ao
tempo o Atlântico erguia-se como uma barreira intransponível. A magnífica Carta
do cronista Pero Vaz de Caminha, onde se dá a notícia ao rei D. Manuel do
Achamento da Terra do Brasil, descrevendo esses primeiros contactos com as
populações índias, os seus modos de vida, os seus hábitos culturais, constitui
um testemunho ímpar da história da humanidade.
Da mesma forma o faz Álvaro
Velho, o pressuposto cronista que vai com a frota de Vasco da Gama à Índia e
que narra pormenorizadamente todos os acontecimentos que foram acontecendo aos
nautas pelo caminho, os fenómenos naturais, as terras, os povos, os costumes.
Uma Viagem de ida e volta que demoraria dois anos, pois que a saída do Restelo,
Lisboa, deu-se a 8 de Julho de 1497 e a chegada a 10 de Julho de 1499. O
aportamento na Índia, em Calecute, aconteceu no dia 8 de Maio de 1498, o que
significa dizer que foram precisos mais de dez meses de viagem por mar, tamanho
era o tempo necessário para o precioso intercâmbio comercial com o oriente. Se
compararmos este facto com a facilidade de mobilidade que temos atualmente, não
podemos deixar de pensar nas múltiplas formas como as coisas mudaram nestes
últimos 500 anos.
Posto isto, contextualizado que
está o assunto, iremos reter agora a nossa atenção entre esse marco fundamental
da história de Portugal, a Viagem de Vasco da Gama à Índia, e as suas
importantes relações com a história local.
Dizer desde logo que, Álvaro
Velho o autor do diário de bordo “Roteiro da Índia”, pois que assim se chama o
texto que nos é legado, era natural do Barreiro, na altura um lugar que
pertencia ao Concelho de Alhos Vedros. Como é sabido, o Barreiro é um dos
filhos de primeira geração do Concelho de Alhos Vedros, do qual viria a
autonomizar-se em 1521 através de Carta de Foral atribuída pelo rei D. Manuel
I. Muito se poderá dizer sobre as longas e profícuas relações entre estes dois
lugares no curso da história do país, dada a sua intemporal relação de
vizinhança, mas a isso voltaremos mais tarde.
Sobre Álvaro Velho, ao que
sabemos, não existem muitas informações sobre a sua vida. Sabe-se que viveu
entre os séculos XV e XVI, um marinheiro, cronista, que foi com Vasco da Gama à
Índia e que na viagem de regresso “deve ter desembarcado na Guiné, onde terá
ficado por qualquer razão imprevista. Na verdade o Roteiro termina bruscamente no dia em que atingem os Baixos do Rio Grande,
e posteriormente há notícias dum Álvaro Velho na costa da Serra Leoa, onde
parece ter estado durante oito anos. Escreveu, além deste Roteiro, uma Descrição da
costa ao sul do rio da Gâmbia, uma Relação
dos Reinos ao sul de Calecut e um Vocabulário
malaio. O Roteiro foi publicado
pela primeira vez em 1838, tendo sido seguidamente traduzido para francês,
inglês e alemão.” (*)
Para terminar, e por curiosidade,
diremos que no Campeonato Europeu de Futebol que se realizou em Portugal em
2004, a bola do jogo foi batizada com o nome de “Roteiro”, justamente em
homenagem à crónica escrita por Álvaro Velho mais de 500 anos antes.
* * *
Deixamos aqui algumas das preciosas descrições de Álvaro Velho nesse seu Roteiro(**)
sobre alguns dos episódios cruciais da Viagem de Vasco da Gama:
- 8 de Julho (1947), partida do
Restelo, “nosso caminho, que Deus Nosso Senhor deixe acabar em seu serviço. Amém.”
(p.19)
- 15 de Julho, ao largo das Ilhas
Canárias “onde fizemos pescaria obra de duas horas, e logo esta noite, em
anoitecendo, éramos através do Rio do Oiro (atual Saara Ocidental).” (p.19)
- 4 de Novembro, baía de Santa
Helena (porto natural na costa atlântica da África do Sul). “Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos-marinhos
e baleias, e carne de gazelas, e raízes de ervas; e andam cobertos com peles e
trazem umas bainhas em suas naturas.” (p.21)
-9 de Dezembro, Cabo da Boa
Esperança (“o mítico Adamastor”, passagem do oceano Atlântico para o Índico).”…a
derradeira terra que Bartolomeu Dias descobriu ” (p.28)
- 11 de Janeiro (1948),
“…houvemos visto um rio pequeno e aqui pousámos ao longo da costa (…) Esta
terra, segundo nos pareceu, é muito povoada e há nela muitos senhores; e as
mulheres nos parecem que eram mais que os homens, porque onde vinham 20 homens,
vinham 40 mulheres. E as casa desta terra são de palha; e as armas desta gente
são arcos muito grandes, e flechas e azagaias de ferro. E há nesta terra,
segundo nos pareceu, muito cobre, o qual trazem nas pernas e pelos braços e
pelos cabelos retorcidos (…) há nesta terra estanho, que eles trazem numas
guarnições de punhais; e as bainhas são de marfim (…) Esta gente é negra, e são
homens de bons corpos; andam nus, somente trazem uns panos de algodão pequenos com
que cobrem suas vergonhas…” (pp. 29-31)
- 2 de Março, “Mais nos disseram
que Preste João estava dali perto; e que tinha muitas cidades ao longo do mar, e
que os moradores delas eram grandes mercadores e tinham grandes naus. Mas o
Preste João estava muito dentro pelo sertão, e que não podiam lá ir senão em
camelos; os quais mouros traziam aqui dois cristãos índios cativos (…) Em este
lugar e ilha, a que chamam Moçambique (…) E depois que souberam que nós éramos
cristãos, ordenaram de nos tomarem e matarem à traição…” (pp.34 e 36)
- 8 de Abril, “Ao Domingo de
Ramos mandou o rei de Mombaça (Quénia) ao capitão-mor um carneiro, e muitas
laranjas e cidrões, e canas-de-açúcar, e mandou-lhe um anel por seguro (…) E o
capitão-mor lhe mandou um ramal de corais, e mandou-lhe dizer ao outro dia iria
para dentro. E, em este dia mesmo, ficaram no navio do capitão quatro mouros
dos mais honrados (…) E, depois de tudo isto, o rei mandou amostras de cravo, e
pimenta, e gengibre, e de trigo tremês ao capitão, e que isto poderíamos
carregar.” (pp.42 e 43)
- 18 de Maio, Calecute (Índia),
“Esta cidade de Calecut é de cristãos, os quais são homens baços. E andam deles
com barbas grandes e os cabelos da cabeça compridos, e outros trazem as cabeças
rapadas e outros tosquiadas; e trazem em a moleira uns topetes, por sinal que
são cristãos; e nas barbas bigodes. E trazem as orelhas furadas, e nos buracos
delas muito oiro. E andam nus da cinta para cima, e para baixo trazem uns panos
de algodão muito delgados; e estes que assim andam vestidos são os mais
honrados, que os outros trajam-se como podem. As mulheres desta terra, em
geral, são feias e de pequenos corpos. E trazem ao pescoço muitas jóias de
oiro, e pelos braços muitas manilhas, e nos dedos dos pés trazem anéis com
pedras ricas.” (p.51)
- 5 de Outubro, (Viagem de
regresso a Portugal) “Andámos tanto tempo em esta travessia, que três meses
menos três dias gastámos nela; isto com muitas calmarias e ventos contrários,
que em ela achámos, de maneira que nos adoeceu toda a gente das gengivas, que
lhes cresciam sobre os dentes em tal maneira que não podiam comer; e isso mesmo
lhes inchava as pernas, e grandes outros inchaços pelo corpo, de guisa que
lavravam um homem tanto que morria sem ter outra nenhuma doença. Da qual nos
morreram em o dito tempo 30 homens, afora outros tantos que já eram mortos; e
os que navegavam, em cada nau, seriam 7 ou 8 homens, e estes não eram ainda
sãos como haviam de ser. Do que vos afirmo que se nos mais durara aquele tempo
quinze dias, andarmos por esse mar través, que não houvera quem navegara os
navios…” (p.81)
- 25 de Abril (1499), “…E os
pilotos diziam que éramos nos baixos do Rio Grande (Guiné)” (p.85), frase com
que subitamente termina o Roteiro,
ficando por descrever por razões já apontadas o resto da Viagem entre a Guiné e
Portugal, embora como se percebe o mais importante já estivesse dito.
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(*) FONSECA, Branquinho, As
Grandes Viagens Portuguesas, Manuscrito Editores, Sintra, 1984, p.18
(**) VELHO, Álvaro, Roteiro da
Viagem Que Em Descobrimento da Índia Pelo Cabo da Boa Esperança Fez Dom Vasco
da Gama, in obra citada.
6 comentários:
Esta sequência de crónicas vem-nos encantando e a gente permite que o prazer se demore porque percebe que a coisa é para continuar.
Melhor do que uma bica e um bagaço (do bom) a seguir a um generoso jantar é ter uma crónica destas - dos 500 anos do foral - a acompanhar.
Amigo Luís, siga a banda que o barco gosta do mar e a malta de aprender, que é como quem diz, de navegar nessa viagem.
Abraço.
Manuel João
O en-cantamento é mutuo. Há que manter o instrumento pronto e afinado para que a orquestra possa tocar. Ou como dizia o outro, quando o músico está pronto, o maestro está pronto também. Portanto, nada mais simples, há que não faltar aos ensaios, e siga a música. Abraço, claro.
Viagem de encanto...
...e, mesmo para marinheiros de água doce, sem efeitos secundários:
-não enjoa!
Abraço,
António
Tal e qual na Ilha dos Amores. Parabéns para ti também. Abraço.
E cá vamos continuando na trilha das celebrações dos 500 anos de Foral, ao mesmo tempo que nos brindas com histórias da nossa História!
Obrigada!
Igualmente agradecido Fernanda pela força certa no momento certo.
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