sábado, 22 de março de 2014

Serpentina


por Miguel Boieiro

Felicito vivamente Teresa Perdigão pelo seu excelente livro “Serpentina – Uma Tradição de Raiz”. Igualmente parabenizo a Junta de Freguesia de Ribeira Chã (Ilha de São Miguel, Açores) pela edição da obra e pelo seu labor na defesa e divulgação das tradições e, em especial, da gastronomia popular da região.

Humildemente confesso que a planta que a seguir irei discorrer, jamais afluiu à minha mente no âmbito das pesquisas que venho efetuando, mormente no tocante à fitoterapia e às espécies silvestres comestíveis. Foi a antropóloga Teresa Perdigão quem um dia despertou a minha atenção para a farinha de serpentina e mais tarde consolidou o meu interesse quando me ofereceu o seu livro.

Pasme-se porque a farinha de serpentina vem de uma planta toda ela venenosa e nunca me passou pela ideia que tivesse algum préstimo. Mais uma vez opino convictamente que todas as plantas são úteis, só que algumas foram esquecidas e noutras ainda não se determinou a sua utilidade.

Ora, com a devida vénia, vou então abordar a Arum italicum, planta perene, julga-se que oriunda da região mediterrânica, conhecida popularmente por jarro dos campos. Pertence à família botânica das aráceas que engloba mais de cem géneros e três mil espécies, quase todas ornamentais pela beleza das suas grandes e lustrosas folhas e originalidade dos apêndices florais. Com fins alimentares são mais conhecidos o inhame, Colocasia esculenta (tubérculo) e, residualmente, a costela-de-adão, Monstera deliciosa (fruto).

Convém desde já explicitar que no respeitante aos jarros, ou seja, ao género Arum, a “Flora Portuguesa” de Gonçalo Sampaio aponta apenas duas espécies espontâneas em Portugal: o Arum maculatum e o Arum italicum. Proveniente de África naturalizou-se também no nosso País, como flor ornamental, o Zantedeschia aethiopica, conhecido por “jarro-de-jardim” ou, mais identificadamente por “copo-de-leite”, como é conhecido no Brasil.

Todos estes jarros são parecidos e todos eles são tóxicos, principalmente as bagas que constituem os frutos. Os dois primeiros aparecem nos campos em zonas húmidas e pouco se distinguem um do outro. Lembro-me de que em tempos da minha meninice, quando faltava a comida para os animais, se colhiam as folhas dos jarros que, após cozidas, se davam aos porcos. Estas plantas possuem um sistema de polinização muito sofisticado. A inflorescência é composta por um espadice branco ou esverdeado que protege a verdadeira flor. No interior do espadice surge um atraente espigão amarelo que tem na base flores femininas e mais acima flores masculinas separadas por um conjunto de filamentos. Quando as flores femininas estão recetivas, a temperatura aumenta e é exalado mau cheiro que atrai insetos (moscos). Estes entram à procura do “pitéu” e ficam aprisionados durante 24 horas, enchendo-se de pólen. Passado esse tempo, os filamentos murcham e os moscos podem então sair para fertilizar outra planta. Para resultar, a polinização tem que ser cruzada, isto é, embora a planta agregue os dois sexos, eles não se fertilizam na mesma unidade. A fim de que tudo dê certo, as flores masculinas e femininas produzem os seus pólenes em espaços e tempos diferentes.

Centremo-nos no italicum, embora me pareça que o rizoma do maculatum pode ter também idêntico aproveitamento para se elaborar a tal farinha de serpentina. Um dia hei-de experimentar!

Diz Teresa Perdigão que a serpentina é colhida quando a “vela” (espigão) desponta, por volta do mês de março. Arranca-se a raiz, formado por socas que, depois de limpas das raízes pequenas, são lavadas. Logo após são cozidas com água e sal a que, por vezes, se adiciona uma erva aromática (funcho, por exemplo). Escorrida a água da cozedura pode-se comer, uma vez que a toxina (oxalato de cálcio) fica eliminada. Para fazer a farinha o processo é mais complexo. A serpentina é ralada para dentro de grandes alguidares com água. Muda-se a água várias vezes no mesmo dia e em dias sucessivos para retirar uma espécie de farelo. Finalmente, a farinha, que vai ficando cada vez mais branca, está pronta para utilizar. A autora apresenta várias receitas, com boas fotografias, incluindo papas, pudins, gelados, bolos, cremes e pratos de carne e de peixe.

Anote-se que a farinha de serpentina, muito usada na ilha de São Miguel em tempos de penúria alimentar, chegou a ser comercializada e exportada para o continente, sendo vendida nas lojas do Jerónimo Martins. Na respetiva embalagem comercializada, respigámos as seguintes frases encomiásticas:
Um caldo de serpentina não é apenas um alimento de alto valor nutritivo e fácil digestibilidade, mas um verdadeiro doce que se aprecia com prazer.
Conclusões da análise do Prof. Charles Lepierre:
Farinha tipo fécula de composição normal, bem preparada, semelhante à da “arrow-root”. Pode entrar na alimentação corrente. Poder alimentício – 3.500 calorias por quilograma.

Para terminar, refira-se que, segundo alguns autores, também em fitoterapia os jarros do campo têm utilidade uma vez que as raízes possuem virtudes expetorantes, podendo ser utilizadas no caso de afeções das vias respiratórias.


1 comentário:

Amélia Oliveira disse...

Estes artigos são sempre uma imensa fonte de aprendizagem.
Dos jarros só sabia dizer que são a minha planta ornamental preferida - desconhecia-lhes qualquer outra utilidade, que não fosse o embelezamento de jarras, jardins e campos. Talvez me aventure a cozinhar as raízes... já quanto à farinha, o processo parece-me bastante mais complexo.
Os meus parabéns pela relevância dos seus artigos.

Amélia Oliveira