por Miguel Boieiro
Felicito vivamente Teresa Perdigão pelo seu excelente livro
“Serpentina – Uma Tradição de Raiz”. Igualmente parabenizo a Junta de Freguesia
de Ribeira Chã (Ilha de São Miguel, Açores) pela edição da obra e pelo seu
labor na defesa e divulgação das tradições e, em especial, da gastronomia
popular da região.
Humildemente confesso que a planta que a seguir irei
discorrer, jamais afluiu à minha mente no âmbito das pesquisas que venho
efetuando, mormente no tocante à fitoterapia e às espécies silvestres
comestíveis. Foi a antropóloga Teresa Perdigão quem um dia despertou a minha
atenção para a farinha de serpentina e mais tarde consolidou o meu interesse
quando me ofereceu o seu livro.
Pasme-se porque a farinha de serpentina vem de uma planta
toda ela venenosa e nunca me passou pela ideia que tivesse algum préstimo. Mais
uma vez opino convictamente que todas as plantas são úteis, só que algumas
foram esquecidas e noutras ainda não se determinou a sua utilidade.
Ora, com a devida vénia, vou então abordar a Arum italicum, planta perene, julga-se
que oriunda da região mediterrânica, conhecida popularmente por jarro dos
campos. Pertence à família botânica das aráceas que engloba mais de cem géneros
e três mil espécies, quase todas ornamentais pela beleza das suas grandes e
lustrosas folhas e originalidade dos apêndices florais. Com fins alimentares
são mais conhecidos o inhame, Colocasia
esculenta (tubérculo) e, residualmente, a costela-de-adão, Monstera deliciosa (fruto).
Convém desde já explicitar que no respeitante aos jarros, ou
seja, ao género Arum, a “Flora
Portuguesa” de Gonçalo Sampaio aponta apenas duas espécies espontâneas em
Portugal: o Arum maculatum e o Arum italicum. Proveniente de África
naturalizou-se também no nosso País, como flor ornamental, o Zantedeschia
aethiopica, conhecido por “jarro-de-jardim” ou, mais identificadamente por
“copo-de-leite”, como é conhecido no Brasil.
Todos estes jarros são parecidos e todos eles são tóxicos,
principalmente as bagas que constituem os frutos. Os dois primeiros aparecem
nos campos em zonas húmidas e pouco se distinguem um do outro. Lembro-me de que
em tempos da minha meninice, quando faltava a comida para os animais, se
colhiam as folhas dos jarros que, após cozidas, se davam aos porcos. Estas
plantas possuem um sistema de polinização muito sofisticado. A inflorescência é
composta por um espadice branco ou esverdeado que protege a verdadeira flor. No
interior do espadice surge um atraente espigão amarelo que tem na base flores
femininas e mais acima flores masculinas separadas por um conjunto de
filamentos. Quando as flores femininas estão recetivas, a temperatura aumenta e
é exalado mau cheiro que atrai insetos (moscos). Estes entram à procura do
“pitéu” e ficam aprisionados durante 24 horas, enchendo-se de pólen. Passado
esse tempo, os filamentos murcham e os moscos podem então sair para fertilizar
outra planta. Para resultar, a polinização tem que ser cruzada, isto é, embora
a planta agregue os dois sexos, eles não se fertilizam na mesma unidade. A fim
de que tudo dê certo, as flores masculinas e femininas produzem os seus pólenes
em espaços e tempos diferentes.
Centremo-nos no italicum,
embora me pareça que o rizoma do maculatum
pode ter também idêntico aproveitamento para se elaborar a tal farinha de
serpentina. Um dia hei-de experimentar!
Diz Teresa Perdigão que a serpentina é colhida quando a “vela”
(espigão) desponta, por volta do mês de março. Arranca-se a raiz, formado por socas
que, depois de limpas das raízes pequenas, são lavadas. Logo após são cozidas
com água e sal a que, por vezes, se adiciona uma erva aromática (funcho, por
exemplo). Escorrida a água da cozedura pode-se comer, uma vez que a toxina
(oxalato de cálcio) fica eliminada. Para fazer a farinha o processo é mais
complexo. A serpentina é ralada para dentro de grandes alguidares com água.
Muda-se a água várias vezes no mesmo dia e em dias sucessivos para retirar uma
espécie de farelo. Finalmente, a farinha, que vai ficando cada vez mais branca,
está pronta para utilizar. A autora apresenta várias receitas, com boas
fotografias, incluindo papas, pudins, gelados, bolos, cremes e pratos de carne
e de peixe.
Anote-se que a farinha de serpentina, muito usada na ilha de
São Miguel em tempos de penúria alimentar, chegou a ser comercializada e exportada
para o continente, sendo vendida nas lojas do Jerónimo Martins. Na respetiva
embalagem comercializada, respigámos as seguintes frases encomiásticas:
Um caldo de serpentina
não é apenas um alimento de alto valor nutritivo e fácil digestibilidade, mas um
verdadeiro doce que se aprecia com prazer.
Conclusões da análise
do Prof. Charles Lepierre:
Farinha tipo fécula de
composição normal, bem preparada, semelhante à da “arrow-root”. Pode entrar na
alimentação corrente. Poder alimentício – 3.500 calorias por quilograma.
Para terminar, refira-se que, segundo alguns autores, também
em fitoterapia os jarros do campo têm utilidade uma vez que as raízes possuem
virtudes expetorantes, podendo ser utilizadas no caso de afeções das vias
respiratórias.
1 comentário:
Estes artigos são sempre uma imensa fonte de aprendizagem.
Dos jarros só sabia dizer que são a minha planta ornamental preferida - desconhecia-lhes qualquer outra utilidade, que não fosse o embelezamento de jarras, jardins e campos. Talvez me aventure a cozinhar as raízes... já quanto à farinha, o processo parece-me bastante mais complexo.
Os meus parabéns pela relevância dos seus artigos.
Amélia Oliveira
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