sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Livros d'África




WANDA RAMOS (1948 – 1998)



Esta escritora já não está fisicamente entre nós: deixou-nos em 1998. Nasceu no Dundo, província da Lunda Sul, em 1948. Filha de um funcionário da Diamang, por lá passou a infância. Depois de fazer o exame de admissão, em Malanje, viajou para Portugal onde frequentou os estudos secundários e universitários. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Entre 1982 e 1984 pertenceu aos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Escritores.

No início da década de 70 voltou a Angola acompanhando o marido, destacado em comissão militar. Foi então que aproveitou a experiência para recuperar as memórias da sua infância angolana. O resultado foi a publicação de um belíssimo livro a que chamou “PERCURSOS – DO LUACHIMO AO LUENA” publicado pela Editorial Presença. Com este trabalho ganhou o Prémio de Ficção da APE, em 1980. Em 1995 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Cidade de Almada pela obra “Litoral (Ara Solis)”, publicado em 1991.

Em “Percursos – do Luachimo ao Luena”, uma obra a todos os títulos notável, ficam dorida e claramente expressas as relações humanas orientadas por um regime opressor e discriminatório. Porém, este livro, dada a sua grande riqueza e complexidade, não se consegue resumir: tem que ser avaliado no todo. DEVE ser lido e não apenas comentado. Para o comprovar extraí o que segue, onde, em tão poucas linhas, é dito tanto…

“(…) Primeira reminiscência
Vai ‘gora no mato, sinhora. Seu matumbo, vai no mato fazer o quê? Vai ver família, mulher lá, no mussôco. Tem ainda os minino, tirar saudade dele. Vai mas vem logo, tem serviço pra fazer, tem hoje visita.

Enchia-se amiúde o quintal de mulheres, traziam com elas os monas, panos garridos enrolados no corpo, carapinha basta, entrançada, ou tão-só sulcada a deixar ver o couro cabeludo esbranquiçado por entre os tufos densos e escuros, traziam também galinhas ou os ovos das galinhas delas para vender, vinham ver os homens delas: acocoradas no quintal, perto de alguma papaeira bem alta. Ladrava-lhes o cão-Ling, corria-lhes atrás, trepavam então de medo árvore acima. De chão de cimento encarnado, era grande a casa, varanda corrida a toda a frente, alpendre atrás. Havia o jardim, canas floríferas da altura de homem, floxes, petúnias, bocas-de-lobo, sécias. As que mais gostava. Regado tudo à tardinha, descido o sol de mil ardências sobre o sossego à hora crescendo, já quase noite, gostava então de ver o jardineiro ensopar a terra de água – sendo à vezes a mãe que o fazia. Ousou algumas vezes ainda pedir a mangueira, sempre lha recusaram, pequena que és, sabes lá tu como se rega um jardim, melhor era se fosses fazer os deveres e, além disso, dar confiança ao preto, pôr-se ele para aí a mangonhar.

Os deveres da escola: tabuada muito de cor, a geografia desse continente longínquo onde como podia lembrar-se de ter estado? – fora no puto não tinha ainda um ano, voltou tão-logo que não deu para conhecer. Só sabia dali, chuvadas torrenciais e a terra muito cheirosa depois delas, assustadoras trovoadas com os musseques a arder, as queimadas acarretando farripas de cinza e emporcalhando as cortinas, preciso era fechar as janelas todas; ou então, as imaginadas serpentes no cocuruto das mangueiras, soltavam-se sobre as pessoas para as matar, dizia-se. Geografia de um continente longínquo de cor, as serras todas, os rios de seguida, os caminhos-de-ferro sem hesitações, as províncias uma a uma. E os inúteis brinquedos que de lá vinham, mandados pela tia beata e solteirona, os avós, portadores de mundo desfasado, necessariamente mitificado nos servicinhos de plástico às florinhas, nas panelinhas de alumínio, nalgum tecido de mais rica textura ou estampado. Supostamente mais à moda, vestir a menina de folhos, organzas e cambraias por entre os calores e poeiradas africanas, laçarotes no cabelo, fitinhas de cetim – pois não era frustrante vesti-la somente com os tecidos de lá, tobralco, róbia, algum escasso pano importado das américas, que o outro mais ordinário empilhado nas prateleiras do único armazém era coisa para pretas porem à roda do corpo, e não havia ali diversidades nem concorrência? (…)”

Alguns de nós se recordarão destas infâncias…


Tomás Lima Coelho

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