WANDA
RAMOS (1948 – 1998)
Esta escritora já não está fisicamente entre nós: deixou-nos em 1998. Nasceu no Dundo, província da Lunda Sul, em 1948. Filha de um funcionário da Diamang, por lá passou a infância. Depois de fazer o exame de admissão, em Malanje, viajou para Portugal onde frequentou os estudos secundários e universitários. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Entre 1982 e 1984 pertenceu aos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Escritores.
No início da década de
70 voltou a Angola acompanhando o marido, destacado em comissão militar. Foi
então que aproveitou a experiência para recuperar as memórias da sua infância
angolana. O resultado foi a publicação de um belíssimo livro a que chamou
“PERCURSOS – DO LUACHIMO AO LUENA” publicado pela Editorial Presença. Com este
trabalho ganhou o Prémio de Ficção da APE, em 1980. Em 1995 foi-lhe atribuído o
Prémio Literário Cidade de Almada pela obra “Litoral (Ara Solis)”, publicado em 1991.
Em “Percursos – do Luachimo ao Luena”, uma
obra a todos os títulos notável, ficam dorida e claramente expressas as relações
humanas orientadas por um regime opressor e discriminatório. Porém, este livro,
dada a sua grande riqueza e complexidade, não se consegue resumir: tem que ser
avaliado no todo. DEVE ser lido e não apenas comentado. Para o comprovar extraí
o que segue, onde, em tão poucas linhas, é dito tanto…
“(…) Primeira
reminiscência
Vai ‘gora no mato,
sinhora. Seu matumbo, vai no mato fazer o quê? Vai ver família, mulher lá, no
mussôco. Tem ainda os minino, tirar saudade dele. Vai mas vem logo, tem serviço
pra fazer, tem hoje visita.
Enchia-se amiúde o
quintal de mulheres, traziam com elas os monas, panos garridos enrolados no
corpo, carapinha basta, entrançada, ou tão-só sulcada a deixar ver o couro
cabeludo esbranquiçado por entre os tufos densos e escuros, traziam também
galinhas ou os ovos das galinhas delas para vender, vinham ver os homens delas:
acocoradas no quintal, perto de alguma papaeira bem alta. Ladrava-lhes o
cão-Ling, corria-lhes atrás, trepavam então de medo árvore acima. De chão de
cimento encarnado, era grande a casa, varanda corrida a toda a frente, alpendre
atrás. Havia o jardim, canas floríferas da altura de homem, floxes, petúnias,
bocas-de-lobo, sécias. As que mais gostava. Regado tudo à tardinha, descido o
sol de mil ardências sobre o sossego à hora crescendo, já quase noite, gostava
então de ver o jardineiro ensopar a terra de água – sendo à vezes a mãe que o
fazia. Ousou algumas vezes ainda pedir a mangueira, sempre lha recusaram,
pequena que és, sabes lá tu como se rega um jardim, melhor era se fosses fazer
os deveres e, além disso, dar confiança ao preto, pôr-se ele para aí a mangonhar.
Os deveres da escola:
tabuada muito de cor, a geografia desse continente longínquo onde como podia
lembrar-se de ter estado? – fora no puto não tinha ainda um ano, voltou
tão-logo que não deu para conhecer. Só sabia dali, chuvadas torrenciais e a
terra muito cheirosa depois delas, assustadoras trovoadas com os musseques a
arder, as queimadas acarretando farripas de cinza e emporcalhando as cortinas,
preciso era fechar as janelas todas; ou então, as imaginadas serpentes no
cocuruto das mangueiras, soltavam-se sobre as pessoas para as matar, dizia-se.
Geografia de um continente longínquo de cor, as serras todas, os rios de
seguida, os caminhos-de-ferro sem hesitações, as províncias uma a uma. E os
inúteis brinquedos que de lá vinham, mandados pela tia beata e solteirona, os
avós, portadores de mundo desfasado, necessariamente mitificado nos servicinhos
de plástico às florinhas, nas panelinhas de alumínio, nalgum tecido de mais
rica textura ou estampado. Supostamente mais à moda, vestir a menina de folhos,
organzas e cambraias por entre os calores e poeiradas africanas, laçarotes no
cabelo, fitinhas de cetim – pois não era frustrante vesti-la somente com os
tecidos de lá, tobralco, róbia, algum escasso pano importado das américas, que
o outro mais ordinário empilhado nas prateleiras do único armazém era coisa
para pretas porem à roda do corpo, e não havia ali diversidades nem
concorrência? (…)”
Alguns de nós se
recordarão destas infâncias…
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