sexta-feira, 31 de outubro de 2014

ALHOS VEDROS - 1 de Novembro de 1755


A 1 de Novembro de 2014 perfazem 259 anos do devastador terramoto
que assolou Lisboa! Também em Alhos Vedros o terrível abalo telúrico se fez sentir! 
Transcrevo um excerto do meu texto (ficcionado) intitulado “Triangulação”,
que publicarei futuramente.

Em Alhos Vedros, a terra estremeceu e tremeram de medo os habitantes da pacata Vila ribeirinha. Por se tratar de Dia de Guarda, o movimento no porto não era o costumeiro. Amarradas à muralha, quatro embarcações empachadas, aguardavam a primeira maré do dia seguinte, para zarpar.
            Cercãs da muralha, uma carreta e uma carroça haviam acabado de descarregar os carretos. À carreta estava jungida uma junta de bois; à carroça, uma parelha de cavalos.
            À porta da hospedaria do Galego, forasteiros proseavam para matar o tempo, aguardando a carreira para Lisboa.
            Para assombro dos três rapazes, repentinamente, os animais principiaram a ficar inquietos. Ecoava ruído cavo e tenebroso, enquanto o solo encetou a oscilar com violência. Os animais tiveram de ser fortemente seguros pelos freios: os bovinos resfolegavam agitados, avançando e retrocedendo; os equinos empinavam-se nas patas traseiras, relinchando amedrontados.
            As casas vibravam, portas e janelas chiavam e pessoas corriam espavoridas, aterradas, buscando refúgio no centro do terreiro.
            - Mirai o esteiro! - bradou José.
            - Que sucedendo, Deus?! - indagou Braz, bradando também.
            - É um tremor de terra! - clamou Kéhindé. - Mas... mas enxergai! Que está sucedendo às águas?!
            As águas retrocederam, deixando as embarcações assentes no lodo. Afora a cala, o esteiro quedou seco por instantes. Das bandas do Norte, emergia desmesurada massa de água que, galgando marinhas, viveiros e sapais, arrasava tudo à sua passagem.
            - Abalemos lestos! - berrou Braz, aterrorizado. – Enxergai! A maré vai galgar!
            Os três rapazes encetaram a correr para a Rua do Cais, seguidos por muita da gente que se achava no terreiro. Os jovens ampararam os mais vagarosos. Para assombro de todos, num abrir e fechar d’olhos, as águas apossaram-se da rua, idas do terreiro e das bandas da caldeira do moinho de maré. Os fugitivos, unidos uns aos outros como podiam, acarretando as crianças nas espaldas, quedaram com água acima da cinta e foram arremessados de encontro aos valados que ladeavam a rua. Aos mais débeis e abatidos valeu o providencial amparo dos mais expeditos. Botes e bateiras vogavam em terra, impelidos pelo ímpeto da maré.
Ecoavam angustiosos brados, mendigando o auxílio miraculoso.
            - São Lourenço, velai pl’a gente!
            - Senhora dos Anjos, amparai a todos!
            - É o Dia do Juízo! - clamou uma voz.
- Santo Cristo, socorrei-nos e salvai-nos!
            A enchente sumiu como havia surgido.
Os brados de pavor não haviam cessado por um só momento. Engalfinhando-se nas árvores, Kéhindé, José e os companheiros alcançaram travar o efeito de sucção das águas. Encharcados, enlameados e espavoridos, permaneceram prostrados nos terrenos empapados.
As culturas haviam sumido.
            - Qu’é dos mes filhos, Deus?! - clamava uma mulher, destroçada, quase fora de si. - Hei precisão d’ir por eles! Ai! Deus meu!
            - Aquietai-vos! Sigamos todos juntos! vos aparteis! Pode ocorrer outra enchente! – alvitrou o jovem africano.
            - O António com a razão! – assentiu Ti Julião. – Quedemos todos juntos... inté ò cais!
            A marcha revelou-se árdua, pois atascavam-se quase até à cintura e tinham de transpor obstáculos ocultos no lodo, que tudo conquistara.
            Alcançado o terreiro, não queriam crer naquilo que enxergavam. A carreta e a carroça estavam emborcadas de encontro à casa dos Mendonça Furtado e os bois jaziam mortos; dos cavalos, nem indícios; em cima da muralha, quase a tombar à água, achava-se uma barca de passagem; dispersos pelo largo, rodos e demais alfaias das marinhas, embarcações arrasadas, árvores arrancadas pelas raízes, montões de mato, sacas e barricas, cavernames desfeitos, quais ossadas descarnadas, o estaleiro derribado.
            Nas paredes das casas, podiam ver-se as marcas da investida de toda a sorte de detritos, amontoados no solo. As embarcações, até então fundeadas, ou estavam emborcadas e afundadas, ou haviam sumido.
            Alcandorados nos telhados, azoinados, expectantes e receosos, os sobreviventes tiritavam de frio e medo. Era assim na hospedaria, na casa de Dona Catarina e na do Senhor Conde, em cujas paredes as águas haviam alçado ao nível das sacadas. A hospedaria e a casa da família Mendonça Furtado haviam sido cabalmente devassadas: portas e janelas arrancadas e grande devastação de bens, efeito da violenta correnteza das águas.
            Embora ainda sob o efeito de tão abrupta e inusitada ocorrência, a quietude volvera aos espíritos das gentes. Por entre brados de alegria e louvor ao Altíssimo, iam-se ajuntando os entes queridos, que a calamidade atrozmente apartara.
            Em redor, afigurava “campo de contenda.”
            - Sigamos pra casa, Kéhindé.
            - Sim, José. Como se acharão por lá?
            - Também vou pl’os meus... – disse Braz.
            - Ide, rapazes. Ide com Deus! - exortou Ti Julião. – Por aqui, tudo se acha calmo. Ide… pl’os vossos. Quão ralados se acharão! Que Nosso Senhor acompanhe e guarde vossemecês!
            Por toda a parte se via gente aturdida: uns carpiam a perda de culturas, gado e demais haveres; outros, fitando atónitos, miravam embarcações assentadas em locais até então inconcebíveis.
            - As águas da maré alagaram a Matriz, que virou ilha! – anunciava Ti Joana, em alta voz, varada pela perplexidade. – Nunca sucedera o tal!
            - Há gente sumida?
- Por aqui não, Braz… – respondeu Ti Francisco que, amparado por vizinhos, se esforçava por virar uma bateira emborcada e prantada onde, anteriormente, havia sido o pomar.
            - Aqui, o Romão, acudiu das bandas da Praça e falou que a maré lambeu os pés ò pelourinho... – informou Soares, filho de Ti Francisco. – Pl’o qu’ele entendeu, também ninguém se acha sumido por lá.
            - Inda bem! - desabafou o rapaz, mais serenado, visto habitar com os pais na Rua do Tinoco. – António, José, vou embora sem mais detença.
- A gente tamém vai… – disse José, apreensivo. - Como se acharão os mes pais?
            Na Rua dos Pinheiros, homens, mulheres e crianças, numa azáfama jamais vista, acarretavam tudo de dentro das casas, que a lama acometera de feição implacável.
            Ao embocar na Rua da Cadeia, José divisou o pai que, alheado, mirava a casa: a chaminé tombara e descortinavam-se fissuras nas paredes.
Soluçando inconsolável, derreada, Ti Zefa sentara-se na soleira da porta, envolta no xale, tapando a cara com as mãos. As vizinhas acalentavam-na, suspirando também. 
            - Ai! Deus! - bradou Rosa, filha de Ti Perpétua, as mãos postas, assim que avistou os dois rapazes, por entre as gentes que enchiam a rua. - Ti Zefa! Ti João! O José mais o António acodem acolá, além! Nosso Senhor seja louvado!
            Incrédula, a mulher alevantou os olhos, de onde as lágrimas haviam sumido e, recobrando as forças que cuidava perdidas, ergueu-se de um salto e correu para os rapazes, de braços abertos.
            - Ai! Filho da minh'alma! Graças ao Senhor, que te achas bem! António, chega aqui, filho! Graças ao Céu pl’os dous! - clamava Ti Josefa, enlaçada aos jovens, beijando-os com carinho.
            Ti João abeirou-se e envolveu os três num forte abraço, chorando com a mulher, mas… de alegria.
            - A gente perdeu os cavalos... - disse José.
            - senhor! - proferiu o carreteiro, entrecortando palavras com soluços. - Os danados acudiram a casa. O Ventarola manca da pata dextra e o Garnizé maltratado na dentuça. Mas acham-se bem vivos, os ladinos!
- Por haverem voltado sem vosmecês é qu’a gente cuidou o pior… - soluçava Ti Josefa.
            - A carreta emborcada, à beira da casa de Dona Catarina… - informou o rapaz.
            - Mas… que sucedeu com as águas, rapazes? Nunca escutara o tal! - confessou Ti Lucas Moleiro, meditativo, afagando as barbas brancas. - E eu ando em este mundo de Deus há um ror de tempo! A terra tremer, vá que vá... Mas o rio galgar a terra! Nunca sucedera! Pl’a minha , asseguro eu a todos vossemecês!
            - Ti Lucas, vossemecê nem sonha o que ocorreu no cais! - declarou José, o semblante mui sério. - há palavras… O rio avultou das bandas do Norte e o terreiro virou mar. A maré de tudo se assenhorou.
            - Relatai à gente… o que vistes…    
- Mais tarde, relatam, Ti Januário. Vossemecê entenda. Por ora, têm é precisão de remanso – interveio Ti João, resoluto. – Vinde daí, rapazes. Vá lá, mulher. Sossega, qu’eles tão a salvo, com a graça do Senhor!
            Ti Zefa ao meio, cingindo cada um pela cintura, seguiu para casa.
Desfeito o ajuntamento que os rodeara, cada um seguiu à sua vida. Muito havia para fazer. A maioria das casas sofrera estragos que urgia reparar. Cinco moradias haviam desabado por completo. Os desalojados acoitaram-se em casa de familiares e vizinhos.
            O adro da Matriz porfiava atestado de povo, que aí acorrera suplicante. Todos se achavam ainda atemorizados, mal refeitos do que ocorrera.
Pela Vila correu a notícia que a Senhora dos Anjos sairia em procissão de ação de graças. E assim sucedeu, rente às dez horas. Pelas doze, muito povo apinhava o templo, para a Santa Missa. Eis que novo abalo se fez sentir. Quem testemunhou, passou a afiançar que só por intercessão da Senhora, Rainha dos Anjos, o templo não ruíra, sepultando todos quantos aí se encontravam.


Francisco José Noronha dos Santos

7 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Não sei se tremi ou estremeci de medo com o terramoto, tal a verdade que consegues transmitir na descrição de "tão abrupta e inusitada ocorrência".

Espero que sejas lesto na publicação de "Triangulação".

Abraço,
António Tapadinhas

luis santos disse...


Junto-me ao comentário do António. Uma descrição que dava um bom filme. Temos obra.

Grande Abraço.

MJC disse...

Eu também não posso deixar de concordar e entro no coro.
É notável o desembaraço com que, até ao nível da linguagem e das expressões, te movimentas na época.
Temos obra, temos.
Abraço.

Manuel João Croca

Unknown disse...

Aos três agradeço as vossas palavras de incentivo!

Mas que coro, o vosso! Fiquei estupefacto!

Abraços para vocês.

Francisco José

António González disse...

Foi com espanto e admiração que li o seu texto. "Vi" todas essas imagens, a dor das gentes e o rolar das aguas e quase fico motivado para procurar evidências arqueológicas dessa arrasadora sequência de abalo/tsunami. Se calhar essas evidências ficaram gravadas no nosso território e só precisam que as saibamos ler. Adorei ler a fluência cativante da sua escrita. Fica-se viciado nela. Obrigado.

Unknown disse...


Amigo González,

Como fico sensibilizado com o seu comentário ao excerto do meu texto!

A opinião de um arqueólogo é sempre importante!

Abraço.



Unknown disse...


Amigo González,

Como fico sensibilizado com o seu comentário ao excerto do meu texto!

A opinião de um arqueólogo é sempre importante!

Abraço.