A 1 de Novembro de 2014 perfazem 259
anos do devastador terramoto
que assolou Lisboa! Também em Alhos
Vedros o terrível abalo telúrico se fez sentir!
Transcrevo um excerto do meu texto
(ficcionado) intitulado “Triangulação”,
que publicarei futuramente.
…
Em Alhos Vedros, a terra
estremeceu e tremeram de medo os habitantes da pacata Vila ribeirinha. Por se
tratar de Dia de Guarda, o movimento
no porto não era o costumeiro. Amarradas à muralha, quatro embarcações
empachadas, aguardavam a primeira maré
do dia seguinte, para zarpar.
Cercãs da muralha, uma carreta e uma
carroça haviam acabado de descarregar os carretos. À carreta estava jungida uma
junta de bois; à carroça, uma parelha de cavalos.
À
porta da hospedaria do Galego, forasteiros
proseavam para matar o tempo, aguardando a carreira para Lisboa.
Para assombro dos três rapazes,
repentinamente, os animais principiaram a ficar inquietos. Ecoava ruído cavo e tenebroso, enquanto o solo
encetou a oscilar com violência.
Os animais tiveram de ser fortemente seguros pelos freios: os bovinos resfolegavam agitados, avançando e
retrocedendo; os equinos empinavam-se nas patas traseiras, relinchando
amedrontados.
As
casas vibravam, portas e janelas chiavam
e pessoas corriam espavoridas, aterradas, buscando refúgio no centro do
terreiro.
-
Mirai o esteiro! - bradou José.
-
Que tá sucedendo, mê Deus?! - indagou Braz, bradando
também.
-
É um tremor de terra! - clamou Kéhindé. - Mas... mas enxergai! Que está
sucedendo às águas?!
As
águas retrocederam, deixando as embarcações assentes no lodo. Afora a cala, o
esteiro quedou seco por instantes. Das bandas do Norte, emergia desmesurada
massa de água que, galgando marinhas, viveiros e sapais, arrasava tudo à sua
passagem.
-
Abalemos lestos! - berrou Braz, aterrorizado. – Enxergai! A maré vai galgar!
Os
três rapazes encetaram a correr para a Rua do Cais, seguidos por muita da gente
que se achava no terreiro. Os jovens ampararam os mais vagarosos. Para assombro de todos, num abrir e fechar d’olhos, as águas apossaram-se da rua, idas do
terreiro e das bandas da caldeira do moinho de maré. Os fugitivos, unidos uns
aos outros como podiam, acarretando as crianças nas espaldas, quedaram com água
acima da cinta e foram arremessados de encontro aos valados que ladeavam a rua.
Aos mais débeis e abatidos valeu o providencial amparo dos mais expeditos. Botes e bateiras vogavam em terra, impelidos pelo ímpeto da maré.
Ecoavam angustiosos
brados, mendigando o auxílio miraculoso.
-
São Lourenço, velai pl’a gente!
-
Senhora dos Anjos, amparai a todos!
-
É o Dia do Juízo! - clamou uma voz.
- Santo Cristo,
socorrei-nos e salvai-nos!
A
enchente sumiu como havia surgido.
Os brados de pavor não
haviam cessado por um só momento. Engalfinhando-se nas árvores, Kéhindé, José e
os companheiros alcançaram travar o efeito de sucção das águas. Encharcados, enlameados e espavoridos,
permaneceram prostrados nos terrenos empapados.
As culturas haviam
sumido.
-
Qu’é dos mes filhos, mê Deus?!
- clamava uma mulher, destroçada, quase fora de si. - Hei precisão d’ir por
eles! Ai! Deus meu!
-
Aquietai-vos! Sigamos todos juntos! Nã
vos aparteis! Pode ocorrer outra enchente! – alvitrou o jovem africano.
-
O António tá com a razão! – assentiu
Ti Julião. – Quedemos todos juntos... inté
ò cais!
A
marcha revelou-se árdua, pois atascavam-se quase até à cintura e tinham de
transpor obstáculos ocultos no lodo, que tudo conquistara.
Alcançado
o terreiro, não queriam crer naquilo que enxergavam. A carreta e a carroça
estavam emborcadas de encontro à casa dos Mendonça Furtado e os bois jaziam
mortos; dos cavalos, nem indícios; em cima da muralha, quase a tombar à água,
achava-se uma barca de passagem;
dispersos pelo largo, rodos e demais alfaias das marinhas, embarcações
arrasadas, árvores arrancadas pelas raízes, montões de mato, sacas e barricas, cavernames desfeitos, quais
ossadas descarnadas, o estaleiro derribado.
Nas
paredes das casas, podiam ver-se as marcas da investida de toda a sorte de
detritos, amontoados no solo. As embarcações,
até então fundeadas, ou estavam emborcadas e afundadas, ou haviam sumido.
Alcandorados
nos telhados, azoinados, expectantes e receosos, os sobreviventes tiritavam de
frio e medo. Era assim na hospedaria, na casa de Dona Catarina e na do Senhor Conde, em cujas paredes as águas
haviam alçado ao nível das sacadas. A hospedaria e a casa da família Mendonça
Furtado haviam sido cabalmente devassadas: portas e janelas arrancadas e grande
devastação de bens, efeito da
violenta correnteza das águas.
Embora
ainda sob o efeito de tão abrupta e inusitada ocorrência, a quietude volvera
aos espíritos das gentes. Por entre brados de alegria e louvor ao Altíssimo,
iam-se ajuntando os entes queridos, que a calamidade atrozmente apartara.
Em redor, afigurava “campo de
contenda.”
-
Sigamos pra casa, Kéhindé.
-
Sim, José. Como se acharão por lá?
-
Também vou pl’os meus... – disse Braz.
-
Ide, rapazes. Ide com Deus! - exortou Ti Julião. – Por aqui, tudo se acha
calmo. Ide… pl’os vossos. Quão ralados nã
se acharão! Que Nosso Senhor acompanhe e guarde vossemecês!
Por
toda a parte se via gente aturdida: uns carpiam a perda de culturas, gado e
demais haveres; outros, fitando atónitos, miravam embarcações assentadas em
locais até então inconcebíveis.
-
As águas da maré alagaram a Matriz, que virou ilha! – anunciava Ti Joana, em
alta voz, varada pela perplexidade. – Nunca sucedera o tal!
-
Há gente sumida?
- Por aqui não, Braz… –
respondeu Ti Francisco que, amparado por vizinhos, se esforçava por virar uma bateira emborcada e prantada onde,
anteriormente, havia sido o pomar.
-
Aqui, o Romão, acudiu das bandas da Praça e falou que a maré lambeu os pés ò pelourinho... – informou Soares, filho
de Ti Francisco. – Pl’o qu’ele
entendeu, também ninguém se acha sumido por lá.
-
Inda bem! - desabafou o rapaz, mais
serenado, visto habitar com os pais na Rua do Tinoco. – António, José, vou embora sem mais detença.
- A gente tamém vai… – disse José, apreensivo. -
Como se acharão os mes pais?
Na
Rua dos Pinheiros, homens, mulheres e crianças, numa azáfama jamais vista,
acarretavam tudo de dentro das casas, que a lama acometera de feição
implacável.
Ao
embocar na Rua da Cadeia, José divisou o pai que, alheado, mirava a casa: a
chaminé tombara e descortinavam-se fissuras nas paredes.
Soluçando inconsolável,
derreada, Ti Zefa sentara-se na soleira da porta, envolta no xale, tapando a
cara com as mãos. As vizinhas acalentavam-na, suspirando também.
-
Ai! Mê Deus! - bradou Rosa, filha de
Ti Perpétua, as mãos postas, assim que avistou os dois rapazes, por entre as gentes que enchiam a rua. - Ti Zefa! Ti
João! O José mais o António acodem
acolá, além! Nosso Senhor seja louvado!
Incrédula,
a mulher alevantou os olhos, de
onde as lágrimas haviam sumido e, recobrando
as forças que cuidava perdidas, ergueu-se de um salto e correu para os rapazes,
de braços abertos.
-
Ai! Filho da minh'alma! Graças ao Senhor, que te achas bem! António, chega aqui,
mê filho! Graças ao Céu pl’os dous! - clamava Ti Josefa, enlaçada aos
jovens, beijando-os com carinho.
Ti
João abeirou-se e envolveu os três num forte abraço, chorando com a mulher,
mas… de alegria.
-
A gente perdeu os cavalos... - disse José.
-
Nã senhor! - proferiu o carreteiro,
entrecortando palavras com soluços. - Os danados acudiram a casa. O Ventarola
manca da pata dextra e o Garnizé tá
maltratado na dentuça. Mas
acham-se bem vivos, os ladinos!
- Por haverem voltado sem
vosmecês é qu’a gente cuidou o pior…
- soluçava Ti Josefa.
-
A carreta tá emborcada, à beira da
casa de Dona Catarina… - informou o rapaz.
-
Mas… que sucedeu com as águas, rapazes? Nunca escutara o tal! - confessou Ti
Lucas Moleiro, meditativo, afagando as barbas brancas. - E eu ando em este mundo de Deus há um ror de tempo! A
terra tremer, vá que nã vá... Mas o
rio galgar a terra! Nunca sucedera! Pl’a minha Fé, asseguro eu a todos vossemecês!
-
Ti Lucas, vossemecê nem sonha o que ocorreu no cais! - declarou José, o
semblante mui sério. - Nã há
palavras… O rio avultou das bandas do Norte e o terreiro virou mar. A maré de tudo se assenhorou.
-
Relatai à gente… o que vistes…
- Mais tarde, relatam, Ti
Januário. Vossemecê entenda. Por ora, têm é precisão de remanso – interveio Ti
João, resoluto. – Vinde daí, rapazes. Vá lá, mulher. Sossega, qu’eles tão a salvo, com a graça do
Senhor!
Ti
Zefa ao meio, cingindo cada um pela cintura, seguiu para casa.
Desfeito o ajuntamento
que os rodeara, cada um seguiu à sua vida. Muito havia para fazer. A maioria
das casas sofrera estragos que urgia reparar. Cinco moradias haviam desabado
por completo. Os desalojados acoitaram-se em casa de familiares e vizinhos.
O
adro da Matriz porfiava atestado
de povo, que aí acorrera suplicante.
Todos se achavam ainda atemorizados, mal refeitos do que ocorrera.
Pela Vila correu a notícia que a Senhora dos Anjos sairia
em procissão de ação de graças. E assim sucedeu, rente às dez horas. Pelas doze,
muito povo apinhava o templo, para a
Santa Missa. Eis que novo abalo se fez sentir. Quem testemunhou, passou a
afiançar que só por intercessão da Senhora,
Rainha dos Anjos, o templo não ruíra,
sepultando todos quantos aí se encontravam.
Francisco José Noronha dos Santos
7 comentários:
Não sei se tremi ou estremeci de medo com o terramoto, tal a verdade que consegues transmitir na descrição de "tão abrupta e inusitada ocorrência".
Espero que sejas lesto na publicação de "Triangulação".
Abraço,
António Tapadinhas
Junto-me ao comentário do António. Uma descrição que dava um bom filme. Temos obra.
Grande Abraço.
Eu também não posso deixar de concordar e entro no coro.
É notável o desembaraço com que, até ao nível da linguagem e das expressões, te movimentas na época.
Temos obra, temos.
Abraço.
Manuel João Croca
Aos três agradeço as vossas palavras de incentivo!
Mas que coro, o vosso! Fiquei estupefacto!
Abraços para vocês.
Francisco José
Foi com espanto e admiração que li o seu texto. "Vi" todas essas imagens, a dor das gentes e o rolar das aguas e quase fico motivado para procurar evidências arqueológicas dessa arrasadora sequência de abalo/tsunami. Se calhar essas evidências ficaram gravadas no nosso território e só precisam que as saibamos ler. Adorei ler a fluência cativante da sua escrita. Fica-se viciado nela. Obrigado.
Amigo González,
Como fico sensibilizado com o seu comentário ao excerto do meu texto!
A opinião de um arqueólogo é sempre importante!
Abraço.
Amigo González,
Como fico sensibilizado com o seu comentário ao excerto do meu texto!
A opinião de um arqueólogo é sempre importante!
Abraço.
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