sábado, 1 de novembro de 2014

EDITORIAL

A Língua é o registo de tudo o que existe. Se considerarmos todas as Línguas da Terra, nelas encontramos a designação de todas as coisas que os homens conhecem no Universo, quer aquelas que acrescentaram à Natureza, no planeta em que vivem, tanto de ordem material como espiritual, quer aquelas que compõem esse mesmo lugar planetário, antes de mais, mas também todos os objectos que, a partir deste pontinho tão insignificante, conseguiram até ao momento identificar no Cosmos. Sejam objectos, ideias, imaginários, enfim, a Língua, no conjunto de todas as Línguas, não só ficam guardados todos os vocábulos como igualmente as reuniões dos mesmos que registam narrativas, explicações, teorias, todas as operações de que o cérebro humano é capaz. É assim que poeticamente se pode dizer que a Língua é o lugar de tudo.
É claro que estamos a falar de modo genérico e por isso de modo algum deixando a simples teoria. Na realidade, as Línguas são fenómenos culturais vivos e dinâmicos que usamos no dia a dia de forma inconsciente, da mesma maneira que, uma vez aprendido, nos equilibramos na bicicleta de uso tão prazenteiro. Acresce que esse mesmo uso, traduzido em termos individuais, não tem como alterar as regras e as operatórias da mesma, quer dizer, não é o uso diário que dela fazemos que a(s) pode(m) alterar se delas quisermos fazer um objecto de estudo. É por isso que a Língua, as Línguas são passiveis de serem material de estudo científico e essa é a razão porque a Linguística é uma ciência, curiosamente, a única a que podemos atribuir as mesmas características de exactidão que a Matemática.
Neste sentido, será razoável supor que mesmo as atitudes e comportamentos humanos ali encontram eco, quer dizer, deverão existir palavras que não só os designem como também os definam. Ainda mais se estivermos a pensar naquelas atitudes e comportamentos que as pessoas, de tanto assim agirem de modo acrítico e espontâneo, acabaram por transformar em hábitos que, em última instância, vêm a materializar os usos e costumes. É de esperar que tudo isso esteja traduzido na(s) Língua(s). Por exemplo, quando se diz de uma população humana que tem esta ou aquela característica – seja a que título for, salvaguardando, no entanto, o perigo das generalizações em determinados âmbitos culturais – será de esperar que hajam palavras e expressões que o comprovem, isto é, mostrem justamente que é de tal modo.
Ora se nós sustentarmos que o etnocentrismo é um fenómeno inconsciente nos homens, nas culturas em que vivem e, por via delas, naqueles, então será de esperar que encontremos nas diversas Línguas humanas o rasto disso mesmo, quer dizer, será de prever que existam vocábulos, expressões, provérbios que resultem de uma maneira etnocêntrica de ver o outro. É claro que hoje em dia, a ninguém certamente ocorrerá usar o termo “chinesice” para designar atitudes ou comportamentos cómicos, indutores do riso em outrem, mas a verdade é que a palavra já foi usada na nossa Língua justamente com esse significado. Como essa outras aqui poderíamos apresentar e ainda não há muito escutei “judiar” para referir alguém que estava a importunar um semelhante.
Quer então dizer que a estar certa a minha teoria científica, acertarei na previsão que todas as Línguas contêm outros exemplos equivalentes a esse, pois em todas elas teremos que encontrar esse rasto da inconsciência com que o olhar etnocêntrico faz parte da mundivisão de cada um.
Com isto quero chamar a atenção para a importância da Língua, especialmente quando em ela se criam – ou inventam novas aplicações para palavras existentes – palavras que, pelo uso acrítico, acabam por ser incorporadas nos discursos comuns. É que se queremos anatemizar ou diminuir alguém ou algo, é pela linguagem que começamos.
É isso que estamos a ver na contra-revolução que decorre no mundo em que vivemos e ela há muito que traz esse rasto de que falámos, na Língua – e aqui não apenas no caso português. Quando o vocabulário sociológico – sobretudo no domínio das relações laborais – assimilou a palavra colaborador para efeitos de substituição da palavra trabalhador, abriu-se o campo mental para tomar por normais e plausíveis todas as ideias e teorias com que se depreciou em primeiro lugar a figura e posteriormente a condição do(s) trabalhador(es) e esse foi o primeiro triunfo dessa bárbara revanche.
Em Novembro que poderia muito bem simbolizar o mês dos vencidos, deveríamos reflectir sobre isso que, afinal, tão nefastas consequências acabou por trazer para a vida das pessoas comuns e de tão evitáveis, tão moralmente rejeitáveis e de em tantas e tantas situações tão legalmente questionáveis que, pelas mortes provocadas, o desemprego provocado e a miséria gerada, por todo o sofrimento desnecessariamente infligido a biliões de inocentes, deveria ser tipificado como uma forma de crime contra a Humanidade.
Não é verdade que um mundo de paz e justiça entre os homens tenha que ser inevitavelmente uma utopia. Seja pois o Novembro um mês de saudação à Utopia.
Essa é também uma das razões de ser deste bonito espaço de liberdade. 


 Luís F. de A. Gomes

Alhos Vedros, 31 de Outubro de 2014

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