domingo, 23 de novembro de 2014


 
 
MIRADOURO Nº 44 / 2014




Esperando o sol na música dos homens

O armazém permanecia fechado, o porteiro tinha ido embora há muito e a rede que cercava o terreno tinha sido aberta há pouco.
Músicos de várias origens e instrumentos, com o nome  sempre terminado em “ista” assim é um instrumentista, reuniam-se naquele complexo corroído pelo tempo, nipes de bateristas, pianistas, contrabaixistas, guitarristas, saxofonistas, clarinetistas, trompetistas, trombonistas, violinistas, violoncelistas e cantoras. Ainda que este último não seja um irmão de sangue dos restantes devido ao termo gramatical, era adotado pelos outros como sendo irmão por um sangue comum sem ser o da gramática.
Numa noite em que os músicos haviam chegado e se preparavam  para começar a receber a música vinda não se de onde, ouve-se um forte ruído na porta degradada que dava acesso á cave, era nesta divisão que se tocava  por ser mais pequena e com uma acústica mais própria para quem queria entrar em contacto com musa apolínea. Num reflexo inesperado viraram-se um certo número de ouvidos em primeiro lugar e um certo numero de olhos quase ao mesmo tempo para ver e ouvir  o que se passava. Quase ao mesmo tempo, pois para quem tem o ouvido como instrumento de trabalho dá-lhe pernas maiores do que aos olhos, que os têm só para ver o que os ouvidos ouvem pela partitura.
A porta a cave abriu-se e logo a seguir tombou pelas escadas devido á ferrugem alojada nas dobradiças, chegou o contrabaixista batendo outra vez com o alto do seu instrumento gigante numa lâmpada fundida há mil anos para iluminar a escadas da cave que agora era iluminada a compressor  e holofote enamorados pelo fio elétrico que os juntava.
Descendo as escadas imponentemente do alto do seu instrumento parou e disse: se começassem sem mim não haveria música mas ruído, pois sou eu a válvula por onde a música entra e sai, o motor de tudo o que ela diz entrando-vos pelos ouvidos. Nos músicos presentes, que acabavam de afinar os seus instrumentos prontos para tocar sem o contrabaixo, logo se ergueu um olhar rasgado com as orbitas dos olhos rodando pelo canto do olho de ódio em punho fazendo mira àquele que acabado de chegar se pronunciara. Um rasto de silêncio cortante seguiu caminho á espera da música que tardava em aparecer na cave. O pianista deu três passos, desafiando o outro, com seu ego ferido, a sua cara era calma, neutra, límpida, serena, seus olhos laminas profundas no corte furioso que a cólera trespassava o coração. De branda voz disse: ia-mos começar tocar sem ti, pois também eu tenho harmonia suficiente para chamar a música e ser o motor desta “Jam Session” aliás sou eu quem vos eleva á música não tu a mim nem a ninguém de nós.
Esta ultima frase que nos apresenta aqui em formato de emoções duras foi dita ao acaso não passando pela portagem da  razão ou intelecto, logo foi descartada num flash pelos restantes músicos, mas que deixava a paisagem emocional da cave num estado obeso que nem mesmo uma dieta musical bem digerida era capaz de conciliar a harmonia que brotava dos instrumentos com a harmonia que se fazia sentir dentro do espirito dos homens.
O contrabaixista ri-se com um riso cínico de besta músical observando o tamanho do seu instrumento passando os dedos nas cordas rijas com que estas vibravam. O clarinetista vira-se do seu sítio, conciliador de divergências pelo tom suave e lírico que lhe sai pelo instrumento e diz: Estamos todos reunidos aqui esta noite pela música, ela virá esta noite pela noite fria vindo adentro, e optamos por não haver público porque só nós a entendemos verdadeiramente, e se mesmo nós que a entendemos não nos entendemos entre nós, os nós que nos prendem á musica podem-se muito bem romper com esse fatal ego que carregamos por nossa culpa. Por isso vamos tocar.
Dito isto o contrabaixista acabou de afinar e começaram a tocar esperando pela música, o conflito lá passou mas o espírito competitivo dos homens permaneceu compatível com o ego que os alimentava, sons belos, eufóricos, tristes, alegres, cómicos, trágicos rodeavam a sala agitada a noite foi explosiva de sons, cores musicais e êxtase, esperaram tanto pela música e a música esperou tanto por eles que quando nasceu o sol a sessão acabou os músicos pegaram nos instrumentos e saíram isolados um a um.
Vendo bem e  pelo raiar do sol que já ia alto aos olhos dos homens, na cave agora escura com um fio de luz entrando pela janela partida rompendo o pó sujo de abandono que circulava no ar , uma criança chorava a um canto suja, o ego dos homens ficou ali naquele canto daquela cave a chorar. Naquela noite a Música não apareceu.


                                                                                      Diogo Correia

1 comentário:

MJC disse...

Amigo Diogo, viva!!!

Fartei-me de esperar por essa crónica (quase desesperava)mas valeu a pena.
Mais uma visão radiográfica sobre quotidianos.
Dizia visão mas que também se alarga ao ouvir, ao cheirar, ao tactear ... e que depois se interioriza para melhor se interpretar no sentir que a alma permite.

Gostei muito mesmo sem música.

Abraço.

Manuel João Croca