Quando
Guerra Junqueiro, após a leitura de Embryões,
mandou dizer a Teixeira de Pascoaes que se deixasse de versos, lançou sobre o
seu livro de estreia – que, 120 anos depois, enfim se reedita em fac-simile –
um imenso anátema. O noviço queimou então quantos exemplares pôde reunir e
renegou tacitamente um livro assim deixado à disputa dos bibliófilos. O severo juízo
final de Junqueiro e o holocausto após o tirocínio comunicaram-se
impressivamente à fortuna crítica futura da obra.
Embryões – logo o título indica – é o livro de
um principiante. Não será, pois, de estranhar que versos frustes ou incipientes
se inscrevam nas suas estrofes. A candura do lirismo deste primeiro Pascoaes,
permeável ao romantismo tardio, revela-se, por exemplo, na expressão solipsista
do sentimento saudoso, na interpelação da Natureza obsidiante, na atracção pelo
remoto e pelo exótico. Ainda que a cadência e a ambiência do seu poema
inaugural, “Eras passadas”, sugiram já a fulguração da Elegia do Amor, não raro, neste livro, as imagens cedem aos
estereótipos e sucedem-se em réplicas que se extremam na repetição de rimas.
Tanto
basta para o encerrar no rol curioso dos documentos raros? Não creio. A si
mesmo o poeta se absolve no soneto dedicado “A M…”, ao confessar que abandona a
sua fraca lyra quando quer medir a noite do Infinito. Em 1916, n’A Alegria, a Dor e a Graça, com Pascoaes
já firmemente creditado como criador e Junqueiro incensado na ara da
consagração, Leonardo Coimbra, após lembrar que a capacidade artística depende
de dois factores, a receptividade e a exprimibilidade, dá os dois grandes poetas como desiguais possuidores
destas qualidades: em Pascoaes é mais
espontânea a receptividade e mais difícil a expressão; em Guerra Junqueiro é
mais lúcida a expressão e mais intelectual e atenta a receptividade. A
prevenção do filósofo auxilia a ponderação de um juízo sobre Embryões, porquanto o acabamento
estético não atinge nunca em Pascoaes, mesmo no mais tardio, ao menos de modo
constante, a refinação refulgente em Pessoa, Pessanha ou Régio.
Tomando
a literatura como expressão do
sobrenatural segundo a lição de Teixeira Rego, já prenunciada em Sampaio
Bruno, de cuja morte se comemora este ano o centenário, e actualizada por
Álvaro Ribeiro, Pascoaes via no poeta o profeta ou o vate – o visionário que vaticina
– segundo a distinção, n’Os Poetas
Lusíadas, entre a poesia espontânea,
Verbo enamorado das cousas e dos seres
que nele se reflectem e vivem, cedendo instintivamente ao ritmo da sua
expansão natural, e a poesia culta,
que, obediente ao preconceito formalista da escola, ostenta, aprisionada, o luxo do seu vestuário. A esta luz, as
referências, em Embryões, a Dante e a
Beatriz, mais do que desculpável pretensão erudita, podem bem ser a chave
autêntica de um reconhecimento.
Na
História Secreta de Portugal, António
Telmo define Pascoaes como o poeta da Natureza.
Um dos veios que já em Embryões se
relevam é o da ressonância cósmica com que o sentimento, alegre ou doloroso,
dos seres e das coisas se amplia na ideação do poeta, invadindo a noite do Infinito que, como se viu, ele
quer medir. Aqui, desde logo, germina
o pensamento sentimental que Pascoaes
elucida n’O Homem Universal. Nota significativa
de quanto em estado larvar se surpreende no livro de 1895 reside no registo
reiterado do medo infundido pela
presença de entes naturais ou sobrenaturais, que n’As Sombras, obra madura de 1907, Pascoaes, segundo Telmo, dominará
pela invocação.
A
leitura de Embryões, onde poemas vinculados
como “As geleiras do Norte” e “O Egito” preludiam, pela dualidade contrapolar do
simbolismo cosmológico, uma visão larga do chiaroscuro
da Saudade, pode ser encarada como uma arqueologia de Pascoaes, isto é, como um
discurso sobre os princípios operativos e especulativos da sua obra. Neste
sentido, o soneto “Valjean”, onde o herói huguesco é saudado como metamorfose imensa do Universo, mais do
que um eco entusiástico da leitura de Os
Miseráveis, ou do que o prenúncio de “Victor Hugo”, artigo publicado na 1.ª
série de A Águia, antecipa a polémica
sobre «O Sentido da Vida», onde Valjean, criatura do Reino Psíquico, culmina,
na visão de Pascoaes, um evolucionismo espiritualista movido pela sucessão
sacrificial dos reinos mineral, vegetal e animal. E se a consciência moral
depositada em “A engeitada” anuncia já a beleza indignada e condoída dos
quadros de Para a Luz, o derradeiro
terceto de “As geleiras do Norte”, onde se acusa o jesuitismo e a negra Inquisição, prefigura o anticlericalismo
pascoalino, vincado nos textos da campanha saudosista e jamais abandonado pelo
poeta.
Uma
semana depois do Congresso “A Arte de Ser
Português no centenário da sua publicação”, no âmbito de um fecundo Triénio
Pascoalino que muito fica a dever à dedicação de Sofia A. Carvalho, o
lançamento de Embryões, com
autorizado prefácio de António Cândido Franco, acentua a perenidade de
Pascoaes.
Pedro
Martins
[Teixeira de Pascoaes, Embryões,
Câmara Municipal de Amarante, 16 + 133 pp.]
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