Recordam-se vocês do bom tempo d’outrora,
Dum tempo que não volta mais
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em Junho os bandos de pardais?
- Esta quadra de Guerra Junqueiro, fez-me voltar aos tempos
de Coimbra onde começavam, um pouco a medo, a chegar alguns conhecimentos sobre
a história dos territórios do ultramar e do longínquo Japão de Wenceslau de
Morais. Talvez se tivesse iniciado com Cadornega, Elias Alexandrino da Silva
Correa, seguidos de outros, como António Enes, Mouzinho, Brito Camacho e por aí
vai. Eu, insular, plantado quase a meio caminho entre a Europa e África não
podia ficar indiferente. Bem mais tarde apareceram Castro Soromenho, Ralph
Delgado, Alda Lara, Agostinho Neto, sobre Angola, Jorge Barbosa de Cabo Verde,
Amilcar Cabral da Guiné, José Craveirinha de Moçambique e tantos outros que
ficaria aqui a enumerá-los o resto do tempo que nos concederam.
Com sua barba hirsuta, branca, ar triste e cansado Wenceslau
de Morais limita-se a dizer:
- Tokushima! Tokushima! E minhas amadas Ko-Haru e Ó-Yoné.
Vivo agora com elas eternamente!
Cadornega, que sorrateiramente foi para Angola com 16 anos,
para evitar a fúria da malfadada Inquisição:
- Vitorino! Não imaginas como foram complicados e difíceis
aqueles primeiros anos em Angola! Enfrentar as sempre falsas populações do
interior com quem queríamos simplesmente comerciar e levar a palavra de Cristo,
lutar contra um clima insalubre e ainda ter que enfrentar os hereges
holandeses! Não sei como consegui resistir tantos anos. E as guerras, sempre
insanas, de parte a parte.
- Cadornega! Eu que nasci “americano-português” na Ilha de
Santa Catarina, no Brasil também vivi uns largos anos em Angola, e deixei
escrito o que lá vi e aprendi. Mas pouca gente sabe disso e pouca importância
dão. Fui depois, cansado, acabar os meus dias na minha terra, mas sempre com
uma estranha saudade de África!
- Como se admirar por isso, meu caro Elias Alexandrino?
Vocês devem saber, que eu, jornalista, acabei por ser “obrigado” a ir para
Moçambique, com a finalidade de pôr ordem no caos que por lá se vivia. Por um
lado os nativos e, pior, os ingleses que nos queriam correr da Delagoa Bay,
fornecendo armamento aos zulus para que eles corressem com os portugueses.
Valeram-me aqueles homens da fibra dos que sempre fizeram história na nossa
terra: Paiva Couceiro, Mouzinho, Ayres d’Ornelas, Caldas Xavier, Azevedo
Coutinho e muitos outros. Pacificou-se – não totalmente – o país que pôde
começar a progredir, e demos definitivamente o recado aos gulosos ingleses!
- António Enes! Antes dessas lutas e acordos de pacificação
já nós, na companhia de Brito Capelo e Serpa Pinto, tínhamos corrido, a pé, a
maioria do interior africano, ligando Angola a Moçambique. Tivémos nossas
desavenças, o que considerámos normal, mas desbravámos parte dum mundo
desconhecido da Europa. Hoje, se pudesse, repetiria a façanha!
- Queria ver hoje alguém repetir esse feito, Roberto Ivens.
Oliveira Martins, que pairava “guloso” entre tantos grupos
sobre quem ele havia estudado e escrito, desde D. João I a Camões e às epopeias
marítimas, ouvia entusiasmado os “africanos”. Pensava em Bernardo de Brito e
suas Histórias Trágico Marítimas, nos trabalhos vividos por quem se aventurou
por esses mares nunca dantes navegados, e cochichou com Joaquim Pedro Celestino
Soares:
- Não acabaram as aventuras do mar no tempo das descobertas.
Mas o teu livro “Quadros Navais” continuou a mostrar a valentia e determinação
dos nossos marinheiros.
- Agora não há mais perigo, porque o Portugal glorioso e
orgulhoso das suas marinhas, desde o grande rei Diniz, hoje quase nem
barquinhos de pescadores tem. Tenho ouvido, que ainda há um português, vivo,
que constantemente luta contra essa vergonha marítima e ninguém o ouve! Que
tristeza.
- Eram simpáticas, sim as viagens de navio entre Portugal e
Ultramar. E tempo houve em que as relações entre as populações nativas e os
portugueses eram fáceis e agradáveis. Mas depois do Tratado de Berlim tudo se
complicou. Apesar disso manteve-se uma união que poderia ter sido mais um
caminho para a concretização do 5º Império, como tão bem, ultimamente frisou
Agostinho da Silva. Até eu que fui estudar para Portugal, porque era um pouco
“a nossa terra”, acabei perseguido por tentar valorizar os povos da minha
terra, e fui obrigado a pegar em armas contra um governo cego, covarde e mudo.
- Antes de ti, Agostinho Neto, comecei eu também a ficar mal
visto por ter escrito o que vi e vivi em Angola e tive também de ir embora,
para onde não me incomodassem. Infelizmente não tive o prazer de assistir à
Independência dessa terra para onde fui acabado de nascer.
- Soromenho, até hoje o teu nome é respeitado. Tu foste um
percursor da literatura “de dentro para fora”! Cantaste a triste vida do
angolano pobre, como era maltratado, e isso desagradou às governanças, mas fez
escola. Eu chorei a vida triste dos segregados. Nasci em Benguela, uma cidade
com convívio especial mas, ainda assim com imensas desigualdades. Tentei lutar
com a minha poesia. “E apesar de tudo, Ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha
eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África!” Usando até metáforas para
chamar a atenção, como “À prostituta mais nova Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados Em cristal, límpido e puro...”
- Alda! Alda! Como chorámos, todos, quando nos deixaste. Não
havia uma só boca, independente da cor de suas peles que não cantasse os teus
poemas, muitos deles a quem entretanto corriam lágrimas pela cara! Não só pela
beleza da poesia como pela consciência da mensagem que transmitia.
- Meu irmão! Talvez o maior sonhador que Angola terá
conhecido! O Antero de Quental de Benguela dos quintalões, sempre à procura
daquilo que só encontramos quando deixamos a nossa carne entregue à Terra que
nos viu nascer. Em todos os que conheceste deixaste um amigo, um admirador e...
até um quanto de inveja em cada um deles por te verem alegre e triste,
descontraído e preocupado mas sempre com uma palavra de esperança para todos.
- Eu que o diga, que te conheci bem, bebi dos teus
pensamentos, do grande Tomaz Vieira da Cruz, aprendi a conhecer o Sul de Angola
com os trabalhos do Padre Carlos Estermann, saboreei os contos do humilde Oscar
Ribas, e entusiasmei-me completamente com uma simples “ordem” do Rui de Noronha
que lá de Moçambique nos deu o caminho: “África, surge et ambula”! E quanto
mais me entusiasmava mais me perseguiam e acabei, com a “ordem existente”, por
perder alguns amigos, como o José Luandino que passou quase treze anos atrás
das grades! Foi quando aproveitou para escrever. E que bem escreveu! Ganhou um
duplo prémio! O Prémio da Melhor Novela, pelo livro Luuanda, que lhe atribuiu a
Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, quando estava preso, e o gozo que
lhe terá dado ver que esse prémio provocou um tremendo pavor e confusão no
covarde governo que até, tão ridiculamente, proibiu que os jornais divulgassem
o prémio ganho por um presidiário!
- Tão caricata a atuação do Governo que logo extinguiu essa
Sociedade de Autores. Lembras bem disso, com certeza, Mário de Andrade! Eu
sempre tive presente um pequeno poema do cabo-verdiano Jorge Barbosa que,
sobretudo nos Estados Unidos continua a ser como notícia, revoltante:
“Ocorrência em Birmingham”
John
de Birmingham, Alabama, USA
entrou na tabacaria.
Foi insultado
soqueado
expulso.
Na rua
o polícia
espancou
derrubou
cuspiu
prendeu o desordeiro.
Negro safado!
Coisas parecidas presenciei, sempre que um idiota se julgava
superior. Fui para Lisboa onde estudei agronomia, e o que é curioso é que lá me
dava bem como todos os colegas. Quando regressei à Guiné é que vi que não
podíamos continuar a ser assim tratados.
- Amilcar Cabral, foste um exemplo, e sempre admirado.
Malditos para sempre os que te mataram fazendo crer que foram os portugueses.
Bem dizias tu: “Se alguém me há de fazer mal, é quem está aqui entre nós”.
Apesar de estares a comandar a luta armada, a tua morte, em Portugal foi sentida.
- Hoje, lá onde estamos não há amigos ou inimigos, mas
deixa-me tratar-me por amigo, José Craveirinha. Tu, filho dum humilde e bom
português que sempre foi um simples operário em Moçambique, que “nasceste a
primeira vez em 28 de Maio de 1922 entre o Alto Maé e como quem vai para o
Xipamanine. Num bairro de pobres”, e que lutaste entre duas pátrias, pai e mãe
que sempre se amaram, e assim desde cedo viste que a cor da pele só encobre os
corações. Com razão és conhecido como o maior poeta de Moçambique.
- Contigo aprendi a amar ainda mais este país, e do mesmo
modo sem conseguir conviver em paz entre o novo Moçambique e o velho Portugal.
- O mesmo comigo Rui Knopfli. Nasci no velho Portugal, saí
de lá menino, voltei para cursar Belas Artes. Mas logo regressei a Angola que
já considerava a minha terra. Não creio que alguém possa passar incólume por
África. A paixão pelas belezas naturais, sobretudo pelo seu povo, amável,
bonito, acolhedor. Senti-o e vivi essa paixão em Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné e São Tomé e até Brasil, pela pintura e pela poesia. Eu, que no
fundo não era mais do que um pintor, me atrevi com a poesia, inspirado em
tantos amigos, alguns dos quais não tive oportunidade de conhecer, mas que lia
com avidez.
Entretanto São Pedro fazia chegar aos ouvidos do organizador
do Encontro que era preciso desocupar o refeitório. Estava quase na hora dos
monges irem tomar a sua primeira refeição da manhã, e não podiam descobrir
aquela “festa”.
Há muito, uns quantos convidados já se haviam retirado, a
começar pelo velho Rei Afonso X. A animação agora estava em África, e pelas
caras de todos via-se que ficariam ali... eternamente.
Neves e Sousa, “ouviu” também o chamado de São Pedro e pediu
para terminar o Encontro, que considerou uma das grandes dádivas do Céu, com
dois pequenos poemas que o levavam, como a todos os outros a se embalaram na
música suave dos povos de África.
- Deixem-me terminar este nosso fantástico Encontro com uns
pequenos poemas a começar por este do Grande Tomaz Vieira da Cruz, que até
música tem:
Quissange - Saudade Negra
Não sei, por estas noites tropicais,
o que me encanta...
Se é o luar que canta
ou a floresta aos ais.
Não sei, não sei, aqui neste sertão
de música dolorosa
qual é a voz que chora
e chega ao coração...
Qual o som que aflora
dos lábios da noite misteriosa!
Sei apenas, e isso é que importa,
que a tua voz, dolente e quase morta,
já mal a escuto, por andar ausente,
já mal escuto a tua voz dolente...
Dolente, a tua voz "luena",
lá do distante Moxico,
que disponho e crucifico
nesta amargura morena...
Que é o destino selvagem
duma canção em que tange,
por entre a floresta virgem
o meu saudoso "Quissange".
Quissange, fatalidade
deste meu triste destino...
Quissange, negra saudade
do teu olhar diamantino.
Quissange, lira gentia,
cantando o sol e o luar,
e chorando a nostalgia
do sertão, por sobre o mar.
Indo mares fora, mares bravos,
em noite primaveril
acompanhando os escravos
que morreram no Brasil.
Não sei, não sei,
neste verão infinito,
a razão de tanto grito...
-Se és tu, oh morte, morrei!
Mas deixa a vida que tange,
exaltando as amarguras,
e as mais tristes desventuras
do meu amado Quissange!
E da nossa África negra, que procurámos cantar e pintar, uma
saudação de Mário de Andrade:
Minha avó negra, de panos escuros
da cor do carvão
Minha avó negra, de panos escuros
que nunca mais deixou.
Andas de luto.
Toda é tristeza
De repente o refeitório ficou vazio!
18/01/2017
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