Praia das Maçãs, Malhoa, 1918Óleo sobre Madeira, 690x870mm |
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
ao luar
e ao sonho, na estrada deserta,
sozinho
guio, guio quase devagar, e um pouco
me
parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
que
sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
que
sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
que
sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou
passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
mas,
quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre
esta inquietação, sem propósito, sem nexo, sem consequência,
sempre,
sempre, sempre,
esta
angústia do espírito por coisa nenhuma,
na
estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…
Maleável
aos meus movimentos subconscientes do volante,
galga
sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio
do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em
quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas
coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto
me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À
esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À
direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O
automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
é agora
uma coisa onde estou fechado,
que só
posso conduzir se nele estiver fechado,
que só
domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida
ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se
alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez
à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei
(com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez
à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
no pavimento térreo,
sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
e ela
me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei
sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu,
guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada
de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
guiando
o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
perco-me
na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
e, num
desejo terrível, súbito, violento, inconcebível, acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo
sem vê-lo,
à porta
do casebre,
o meu
coração vazio,
o meu
coração insatisfeito,
o meu
coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na
estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
na
estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
na
estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
na
estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…
Poesias
de Álvaro de Campos
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