terça-feira, 13 de setembro de 2011

INTIMIDADES

OS AMORES PERFEITOS
Nascem, crescem, florescem
alegram-nos o olhar
e quando o Sol ajuda
as cores a brilhar,
o nosso olhar insiste
para neles poisar.

Quando a Primavera acaba
deixam sair a semente,
e quando o Sol ajuda,
e a chuva, e o ar…
nascem novamente
para nos encantar.

Morrem depressa os amores perfeitos
mas sempre voltam a nascer.

João Martinho
 
 
A TIA ENGRÁCIA
 
 
Quanto à tia Engrácia, sempre simpatizei com a sua maneira de ser que a faz andar de cabeça levemente inclinada sobre a direita, para olhar o semelhante pelo óculo esquerdo, sem com isso omitir os sorrisos da cortesia pelos cruzamentos do dia a dia. Aquele seu ar de quem por vezes canta na rua, aparentemente vivendo nas nuvens mas que eu sei, pois a conheço bem, impreterivelmente dado a admirar as colorações e figurações da atmosfera, ou quaisquer eventos da vida envolvente.
Diz minha mãe que ela sempre foi assim, desde muito pequenina dada a saltitar pelos passeios, passando tão facilmente de brincadeiras e canções, como repentinamente se podia perder numa erva brotando pela ranhura de um muro ou, tão só, em coisas do género de uma beata arrastada pela corrente pluviosa em busca de se cascatear pelas sarjetas.
“-Mas tinha uma coisa boa. Nunca deixava de dar as saudações a quem quer que fosse.”
E mais não fazia que a sua obrigação que, nestas coisas, os meus avós paternos caracterizavam-se por uma exigência sem memória de qualquer concessão à facilidade.
Pois não foi isso que a impediu de em praticamente tudo o que importa levar a sua à vante.
O tio Lino ainda hoje se ri ao contar o teatro de pé-de-vento com que a minha tia arrancou à tradição o beneplácito para estudar no Liceu, então uma gaiatinha magricela e com voz aflautada, com a impensável energia de bater o pé e ameaçar, vejam só, pôr termo à vida em nome da sede de sabedoria.
Nem outra coisa seria de esperar. Fez os estudos com distinção e até que se cursou em Histórico-Filosóficas, jamais teve a menor reprovação.
O Dr. Cabrita, o meu pediatra e que tinha acabado o sétimo ano com a minha tia, perguntava sempre por ela e por vezes falava do seu nariz no ar que sendo leal e prestável com os amigos, fazia dos rapazes lacaios e tratava as outras miúdas como se elas tivessem que aprender constantemente a atravessar a estrada.
Logicamente impregnada da sua personalidade de quem vive na Lua, condizente com a sua capacidade para e interpretar os mestres em volumes raros para a sua idade.
É o lado intelectual da tia, aquele que a fez ser uma professora exigente com o seu próprio trabalho, a ponto de se poder gabar de nunca ter faltado aos alunos que, ao longo de uma trintena, muitos e variados foram, embora todos possam recordar-lhe as trocas de turmas e de salas, ou as escorregadelas e encontrões em cadeiras e mesas por via do entusiasmo com as prelatórias, mas também o prazer de a ouvir fazer simples o complicado e lhes fazer entender aquilo que antes, por desconexo, soava a incompreensível.
Ali tinha o seu Olimpo, onde podia dar largas ao seu gosto de cogitar, sem se preocupar com os pontos de vista da plateia sobre o seu comportamento, pois, apesar de no fim da adolescência ter provocado um baque na minha querida avó, por usar calças e dançar o twist, até ela teve de ceder em levar a Jorgina para Coimbra, se não como tutora, pelo menos como ama de companhia, pois só assim o pai lhe permitiu uma aventura daquelas.
Lá passou cinco anos entre os livros e o quarto, de onde voltou mulher para unir o coração ao do filho de um ourives que, seguindo as pegadas do progenitor, acabou por fazer a fortuna que melhor melou uma felicidade que ainda dura e que só não terá sido completa porque uma papeira traiçoeira ceifou ao rapaz a possibilidade de reproduzir os seus genes.
Claro que lá caiu o Carmo e a Trindade, mas nem as ameaças de expulsão e corte na herança demoveram a vontade da minha tia em não contrair matrimónio. E como na verdade os anos passaram sem que o casal tenha dado o menor sinal de alarme, tudo acabou por ficar bem e todos fizeram de conta que a situação estava conforme às suas crenças e valores.
Nunca alguém soube explicar estas coisas da tia Engrácia, mas o meu tio João que Deus tem, costumava defender a ideia que simplesmente era para ali que lhe dava.
“-A Gracinha sempre teve… Quer dizer. Sempre teve aquele seu jeito muito particular. Então não foi ela que chamou senhor preto ao manequim que estava à entrada da Casa Africana, para lhe perguntar onde era a secção de roupas para homem?”
Minha querida tia Engrácia que agora se reformou e vive em viagens com o seu amor e amante de uma vida, talvez por isso, estando na melhor forma de sempre.
E por vezes é bom saber que as pessoas, em alguns aspectos, não mudam, pois assim é mais fácil compreendê-las e saber distinguir quando elas nos são amistosas ou não.
Só por isso a senhora dona Chica Dias, a querida Chiquinha, amiga de sempre, continuou choramingando a sua dor e se agarrou ao pescoço da minha tia, na noite do velório ao cadávere do marido, depois dela ter entrado com o seu semblante grave e, de lágrimas nos olhos, ter dito em voz alta:
“-Ai querida. Os meus parabéns.”

Alhos Vedros, 2 de Fevereiro de 1996

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Vai ser difícil para mim, que conheço a família do narrador, não procurar encontrar a pessoa que está ser retratada, nas descrições saborosas que ele faz das suas personagens.

A tia Engrácia que entrou na nossa intimidade numa altura tão dolorida da sua vida, não deve ter sorrido como eu com o lapso (não direi lapsus linguae) da amiga Chiquinha...

É desses encontros e desencontros de falas e pensamentos que a vida se vai vivendo...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Digamos que é uma escolha legítima pegar em vidas reais e pura e simplesmente narrá-las, nos moldes em que decorreram; mais adiante, em outros destes quadros, como se verá, foi isso que fiz. Tenho para mim que mais importante que o trama da história, propriamente dita, é o modo como esta é contada que a pode elevar ao patamar da Arte. Isto é visível em muitos Autores e não podemos esquecer o Malraux que defendia a tese radical de só devermos escrever sobre o que tivéssemos vivido; enquanto o Hemingway, nesta linha de pensamento, defendia que devíamos escrever o que tivéssemos vivido, coisa que um Henri Miller pôs em prátivca, aquele ia mais longe dizendo que devíamos mesmo preocupar em procurar viver para que daí pudesse resultar material para escrever. Mesmo sem qualquer necessidade de chegarmos a tamanha radicalidade e bem mais perto de nós, isso é igualmente visível em Mestre Llosa que, avaliando pelo que escreve em "Como Peixa Na Água", fez de um caso intra-familiar o enredo de "A Tia Júlia E O Escrevedor". Assim sendo, nada a opôr ao uso de materiais verídicos para os transformar na ficção que se quiser construir.

Contudo, não é este verdadeiramente um desses casos, na medida em que afinal, esta sofisticada Tia Engraça em nada corresponde àquela de quem usei o nome. Neste e noutros casos e não só nos frescos posteriores deste trabalho, em outras histórias -contos e romances- também, limitei-me a usar nomes que me são familiares para sobre eles desenhar percursos de vida que dêem a massa necessária para que as personagens tenham o sopro de vida que as pode levar a sair das páginas do livro e a puderem estar entre nós.

É um dos processos da construção da ficção que, para poder reflectir a vida, tem de ser ela própria, essa mesma vida, mesmo quando inteiramente inventada.

É como tu sintetizas e que eu subscrevo inteiramente:
"É desses encontros e desencontros de [que] falas e pensamentos que a vida se vai vivendo..."

Espero então que continues a poder verificar isso e naturalmente que possas continuar-te a divertir.

Aquele abraço, companheiro
Luís