terça-feira, 20 de setembro de 2011

INTIMIDADES

O AVÔ JOÃO

Quando o avô João lia o jornal, umas vezes trancado no escritório, outras refastelado na sua cadeira pessoal, na sala, dependendo da época do ano o estar junto da lareira ou das portas escancaradas para o alpendre meia lua e o laranjal subsequente, nesses momentos de tiquetaqueado puro e simples, a nenhum dos miúdos que habitualmente cirandavam pela residência era permitido o mais leve ruído que pudesse perturbar o ritual informativo do imperador.
No Inverno, aquele era o período em que a avó achava por bem obrigar a pequenada a cumprir os deveres escolares. No Verão, todos eram enxotados para o quintalão, preferencialmente, para os fundos.
Pois é como estão a imaginar, o avô não era homem dado a brincadeiras ou outras intimidades com o sector juvenil da prole e muito menos era do género de apaparicar quem quer que fosse.
Vendo-o hoje com olhos de homem, tenho para mim que, para ele, os netos eram uma espécie de fatalidade com a qual tinha de conviver, como o preço a pagar pelo facto de um dia ter desejado procriar. Restava-lhe minimizar os custos o que conseguia pela regra inquebrável da expressa proibição de lhe perturbarem o sossego.
Por isso, quando nos perguntava algo respondíamos sempre em voz baixa e mesmo quando nos dizia uma graça que nos levasse a sorrir, fazíamo-lo com o comedimento de quem sabia não poder dar largas a qualquer excesso ainda que pouco perceptível fosse.
Lembro-me de correrias, na sua ausência, quer pelo prolongamento de brincadeiras de rua, quer pela prática do jogo das escondidas pelos dois pisos e sótão da mansarda. Estando ele em casa, reinava a mais completa quietude que, pela mundivisão oficial, era a melhor companhia da ordem impreterível ao bom e regular andamento das coisas.
Ordens, na verdade era disso que se tratava. O avô dava-las e não havia a quem ocorresse não as cumprir.
E, como soe dizer-se, havia-las para tudo e todos os gostos. Era para as refeições às tantas horas, para o encontro familiar meia hora antes de cada uma delas, para o café e os licores do serão a outra, sem contar com as inerentes ao funcionamento das parcelas domésticas que ficavam a cargo do pulso de ferro e sóbria língua da matriarca e aquelas que estavam directamente ligadas ao quotidiano do corpo, como o casaco ou o sobretudo apresentado à saída ou então os sapatos luzentes e outras coisas do género.
O avô passava as manhãs no escritório da fábrica a dar conta dos seus negócios e se, por causa deles, não tinha que sair para qualquer lugar, depois da sesta que se seguia ao almoço, peniscava algo e lia o jornal que, geralmente, interrompia para falar com algum filho ou para as suas cogitações. À noite, só não seroava entre os seus quando os afazeres de Provedor da Santa Casa lhe impunham cuidados.
Afinal ele cresceu rico e, tal como o seu pai, se por um lado lhe foi exigido que se preparasse para continuar a sê-lo, por outro, aprendeu a fazê-lo na preservação ortodoxa dos valores em que alicerçava o edifício daquela cultura familiar e social.
Logicamente, levava o seu e todos os outros papéis muito a sério e no que pessoalmente lhe dizia respeito, não prescindia de nenhuma das suas prerrogativas.
Contudo, ao nível das fontes de reprodução da riqueza material, soube compreender e adaptar-se ao seu tempo. Herdou muitas terras, começou por ser iniciado nas artes da lavoura, mas, uma vez adulto, cabeça de casal e à frente dos seus cabedais e fazendas, teve o engenho de se converter em capitão de indústria, baptizando-se com a simples preparação de cortiça, mas depressa passando à sua transformação, com o acrescentamento da produção de colas e, com o tempo, a entrada em outros ramos que variaram do comércio e serviços aos transportes fluviais.
Notável, na Vila, com a idade regressado a uma religiosidade fervorosa após os anos de jacobinismo de uma juventude republicana e laica, o avô João foi durante muitos anos eleito entre os irmãos para atender aos destinos da principal instituição de solidariedade social em todo o concelho, deixando bem patente o seu testemunho com a criação da ala hospitalar, onde teve o longo alcance de fazer construir um moderno bloco operatório que, ainda hoje, prova a sua contribuição, apesar de a placa alusiva ter sido arrancada e extraviada nos anos revolucionários de Abril.
Nasceu e viveu naquela casa onde agora mora o meu tio José, da qual saiu por moto próprio, alegadamente pelo desejo de maior sossego que os seus oitenta e poucos anos justificavam e também pelo facto de não querer sobrecarregar os filhos e noras perante a possibilidade de necessitar de um acompanhamento ou uma assistência sanitária mais personalizada.
Por isso contratou o serviço de um quarto num lar da capital, a seu ver muito recomendável, com a direcção do qual negociou a autorização de entrar e sair quando quer, bem como o privilégio de poder passar temporadas em outros locais, sem com isso cair na situação de, eventualmente, poder perder o seu lugar cativo.
É claro que vulgarmente é o avô que nos visita mas, por vezes, passam-se semanas e semanas em que ele se deixa ficar e, nessas ocasiões, são os parentes que, se o querem ver, se deslocam à sua presença.
Só por uma vez fiz essa peregrinação, numa tarde de Sábado primaveril.
Lá estava o avô João, o único homem saudável do convento –o outro que lá vive está permanentemente deitado devido a uma série de enfermidades- lá estava ele, dizia, para meu grande espanto, todo sorrisos e mui sociável, no meio de um magote de senhoras com olhinhos brilhando de alegria.

Alvalade do Sado, 6 de Fevereiro de 1996

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

E pronto! Já somos íntimos do avô João!

Para mim, tão íntimo fiquei que tenho a sensação, para não dizer a certeza, que conheço a pessoa em carne e osso ou, pelo menos, de uma outra descrição da personagem.

No mundo actual, no miolo das cidades ou nos seus subúrbios, a juventude de agora, a dos computadores e dos telemóveis, julgará que estas pessoas só existem nos filmes que vão vendo na televisão. Eu estou convencido, não sei se concordarás, que no Portugal profundo, continuam de boa saúde os anciãos como o que tão bem descreves.

Um abraço do ancião,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Concordo, sim e seguramente continuam com a mesma sabedoria de compreender que a vida tem tempo para tudo e até ao último suspiro temos sempre tempo para aprender e em ela fazer o que está ao nosso alcance para procurarmos ir melhorando, em tudo, o que somos e vamos pondo, para deixar, nessa mesma vida, o mesmo é dizer, no mundo.

Aquele abraço, companheiro
Luís