quarta-feira, 5 de outubro de 2011

APENAS UMA FÁBULA (E não mais do que uma fábula)


Por
Abdul Cadre


Quando confinamos os nossos queridos pássaros às lindíssimas gaiolas que por bem lhes destinámos, que nos dizem os pássaros prisioneiros?
Quando, de olho atento e guloso criamos em apropriadas capoeiras bicos de rendimento garantido, se as aves pensam, que pensam elas enquanto medram?
Pode bem ser — imagine-se — que nós estejamos aqui aprisionados neste vasto mundo tal como aves de capoeira, nesta enorme capoeira que os Celestes imaginaram para nós…
Os Celestes?
Bom, como desafio à imaginação de quem nos leia, inventemos esta lógica: uma determinada raça galáctica, a quem o nome de Celestes assentaria como uma luva, por intenção ou devaneio artístico, numa passagem por este lado do universo, ter-nos-ia moldado em barro, tomando-se a si próprios como modelo.
Criados assim, não do nada, mas do chão, manipulados depois geneticamente sobre espécies já aqui implantadas, fomos então condimentados com uns pozinhos de estrelas e de sóis ou, dito de outra maneira, condicionaram-nos os Celestes com todas as suas grandezas e misérias, mas como foi do chão que nos ergueram, quando nos proporcionaram o sopro maior da vida, nós olhámos os céus e, julgando-os deuses, chamamos-lhes Celestes.
Quando os nossos criadores/tratadores entenderam que estávamos prontos e éramos o vaso apropriado para a recepção duma inteligência individual e duma consciência que de algum modo reflectisse a deles, assim providenciaram.
Um dia, faz muito tempo, tanto que nem temos referência nos manuais de História, talvez ao som de fanfarras e de cânticos, quem sabe se da música que Wagner mais tarde ouviu e nos deixou em pauta, partiram.
Os leitores menos optimistas e mais azedos poderão dizer que partiram cansados e desgostados com a obra, porém, fica muito espaço para se acreditar que foram em busca de outras urgências de vida por esse espaço fora, porque aqui o mais necessário ficava feito.
O que é certo é que do pacto — se pacto houve — nos deixaram o sinal da sua liberdade e ousadia: esta de fazer ou não fazer e, fazendo, ir além de quanto nos limita.
Tivesse sido assim e isto não fosse apenas uma fábula e ficaria desvendado o segredo do homem feito à imagem e semelhança dos deuses (ou de Deus). Isto explicaria também por que o homem se ergue aos céus e os seus mais próximos viventes — e até os pássaros — olham o chão e isso lhes basta.
Será que o nosso olhar reflecte a não definida saudade das estrelas e dos celestes que aqui passaram? Será por ela — por essa saudade — que nos nasce este desejo que vai inventando auroras adventícias de consolo e realização?
Entretanto, à nossa escala menor de deuses que se ignoram, nem sequer nos apercebemos que vamos manipulando plantas e animais da mesma forma que manipulados fomos, longe no tempo.
Nós não queremos que os nossos pássaros de gaiola e as nossas aves de capoeira sejam infelizes, só que a felicidade deles não é a nossa prioridade. Por isto, talvez não seja uma abusiva suspeita pensarmos que este nosso egoísmo e prepotência sejam semelhantes aos dos nossos antigos tratadores.
E não será excessiva imaginação prevermos que um dia iremos por aí, cruzando estrelas, livres, ousados fazer jus à nossa herança e ao nosso destino de manipuladores genéticos e disseminadores da inteligência cósmica.    

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