António Justo
Na discussão pública que precedeu a visita do Papa, o país de Lutero discutiu profundamente o que Bento XVI teria que mudar. Criou-se uma espectativa que ele traria uma “oferta” (reformas) no sentido duma protestantização da Igreja Católica. Temas como celibato, sacerdócio da mulher, comunhão, democratização das estruturas eclesiásticas, o abuso de menores, foram discutidos até à exaustão, principalmente por aqueles que não vão à Igreja e mantêm uma atitude anticatólica (revista Spiegel e outras). Também surgiram discussões sérias sobre necessidades de mudança. Criaram-se espectativas irrealistas porque estes problemas são assuntos de discussão a realizar no seio da Igreja. Além disso a Alemanha não é o lugar propício para proclamações papais. A discussão unira não só os críticos mas sobretudo os guerreiros ressentidos e intolerantes contra o Papa.
O teólogo Hans Küng tem defendido a formação duma “Coligação de teólogos, sacerdotes, leigos com bispos reformistas” esquecendo que na Igreja católica, orientada muito embora pelas cúpulas, as mudanças foram sempre provocadas pela base. Escreveu aos 5.000 bispos católicos do mundo mas não teve sequer uma resposta.
Naturalmente que a Igreja “sempre reformanda” precisa de contínuo aferimento ao mundo envolvente, sem medo, mas sem obedecer ao espírito do tempo nem a critérios meramente burocráticos. Os irmãos evangélicos já exercitam, em excesso, esse compromisso e não se nota que descrentes e católicos se tornem protestantes. Certamente são necessárias mudanças responsáveis, motivadas pela fé e pela misericórdia (1).
Facto é que os modelos de Cristianismo praticados pelas comunidades irmãs não se têm tornado em estímulos de mudança para a Igreja Católica de Bento XVI. O modelo protestante não convence à mudança do modelo católico porque apesar da adaptação evangélica aos movimentos seculares com democracia, pastores casados, ordenação de mulheres, pastores homossexuais, as suas igrejas ainda se encontram mais vazias que as católicas e a filosofia cristã não encontra maior ressonância no povo que nas zonas católicas, pelo contrário. Também por isto, o Papa não aceita mudanças no sentido duma protestantização do catolicismo nem que se reduza a discussão ao restrito ponto da moral sexual (2). O modelo de Igreja imperial como a anglicana (Commonwealth) também não convence pelo facto de não preservar a unidade de direito e doutrina. A Igreja ortodoxa russa parece demasiadamente comprometida com o poder político. Por outro lado, a região muçulmana com o seu rigorismo na moral sexual também não constitui um estímulo à mudança. Pelo contrário, a Igreja ortodoxa e o islão não sofrem das adversidades da modernidade pelo facto de se não terem aberto a ela, constatam muitos católicos.
Tudo isto, aliado a uma campanha secularista contra o Catolicismo não estimula Bento XVI a fomentar determinadas posições modernas do Vaticano II. Pelo contrário, passou a usar de novo a tiara no sentido da tradição antiga (símbolo do poder pastoral, sacerdotal e do magistério), possibilitou também a liturgia tridentina (nesta o padre celebra, em latim, para o povo e na pós-conciliar o povo celebra com o padre). Nesta fase da história o papa vê mais a necessidade de afirmar a igreja petrina esperando contudo que a mudança venha da fé.
Com a visita papal as ondas negras apaziguaram-se tendo-se ela revelado como ponto alto da razão e da fé, deixando os próprios críticos perplexos. Estes, embora insatisfeitos no que respeita às espectativas de reforma, manifestaram apreciação pelo que Bento XVI disse e fizeram referência à importância duma reflexão profunda sobre as suas palavras.
Bento XVI não abordou nenhum tema conflituoso. Concentrou-se nos fundamentos espirituais da igreja e da sociedade. Mostrou-se abalado pelos “escândalos na Igreja que escondem o escândalo da fé da morte de Cristo na cruz”.
Quanto aos protestantes, o Papa manifestou-se muito cordial; para além dos gestos simbólicos, mantiveram-se as diferenças. De facto, enquanto o protestantismo tem mais a ver com palavras e conceitos, o catolicismo tem mais a ver com imagens e mística. São ecossistemas sociais e geográficos diferentes. A Igreja Católica caracteriza-se por um pensar não tão elitista, mais global e universal, sentindo-se responsável tanto pelo hemisfério norte como pelo hemisfério sul, não se sentindo vocacionada a impor a visão do norte ao sul e menos ainda a visão duma igreja particular (alemã), como pretendem correntes teológicas europeias. A Igreja Católica sente-se chamada a ser mais o ecossistema da biosfera do que um biótopo.
Uma reforma da Igreja obedece a outros critérios que não a critérios políticos ou administrativos. O Papa respondeu indirectamente que igrejas não são grémios políticos. O barulho dos reformadores não deve esconder a falta de fé nem tão-pouco a pressão social de ser como os outros. No diálogo não se trata apenas de razão e de interesses mas de razão e de fé. Questões de fé não são negociáveis. “A fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens ou desvantagens”.
Enquanto se manifesta, na sociedade civil, uma tendência para fomentar o centralismo das nações europeias na União Europeia, e a expansão do globalismo, observa-se, por outro lado, uma crítica impiedosa ao centralismo do vaticano, a única comunidade global existente. Tenta-se responsabilizar o Papa não só pelo que ele deixa de fazer mas pelas consequências da secularização e dum modernismo “bastardo”. Com uma avaliação monocausal e tendenciosa, pessoas e correntes movidas apenas pelo imediato do fenomenológico atribuem a crise ao sistema romano procurando a solução apenas na remodelação do único sistema que se afirma como eixo e paradigma universal. A questão é fundamentalmente um problema de fé e de falta de identidade.
No encontro ecuménico, em Erfurt, Bento XVI advertiu: “O pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica. Para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação da Sagrada Escritura era «aquilo que promove Cristo». Mas isto pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver juntamente com Ele, oriente a nossa vida.” “Esta constitui uma tarefa ecuménica central. Nisto deveríamos ajudar-nos mutuamente: a crer de modo mais profundo e vivo.“ A secularização tem feito de muitos pastores e teólogos meros assistentes sociais, ou até triviais bombeiros reparadores duma sociedade de incendiários que vão da economia até à ciência e à cultura.
O ecumenismo não se pode limitar à discussão sobre reformas estruturais, o problema de hoje é um problema de identidade e de vivência. De resto, já o Mestre de Nazaré dizia: “Na minha casa há muitas mansões”.
O Pontífice mostra-se preocupado: “Não serão as tácticas a salvar-nos, a salvar o cristianismo, mas uma fé repensada e vivida de modo novo, através da qual Cristo, e com Ele o Deus vivo, entre neste nosso mundo… A unidade fundamental consiste no facto de acreditarmos em Deus, Pai omnipotente, Criador do céu e da terra; de O confessarmos como Deus trinitário – Pai, Filho e Espírito Santo. A unidade suprema não é solidão duma mónada, mas unidade através do amor. Acreditamos em Deus, no Deus concreto. Acreditamos no facto que Deus nos falou e Se fez um de nós. Dar testemunho deste Deus vivo é a nossa tarefa comum no momento actual.”
“Mas a fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens e desvantagens”. “Uma fé construída por nós próprios não tem valor. A fé não é algo que nós esquadrinhamos ou concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos. A unidade não cresce através da ponderação de vantagens e desvantagens, mas só graças a uma penetração cada vez mais profunda na fé mediante o pensamento e a vida”. “Porventura não está o mundo a ser devastado pela corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que pensam apenas na própria vantagem?”
Realça a importância de se acentuar no ecumenismo aquilo que une na fé os católicos e os evangélicos. “A coisa mais necessária para o ecumenismo é primariamente que, sob a pressão da secularização, não percamos, quase sem dar por isso, as grandes coisas que temos em comum, que por si mesmas nos tornam cristãos e que nos ficaram como dom e tarefa. O erro do período confessional foi ter visto, na maior parte das coisas, apenas aquilo que separa, e não ter percebido de modo existencial o que temos em comum nas grandes directrizes da Sagrada Escritura e nas profissões de fé do cristianismo antigo.“
“ Porventura será preciso ceder à pressão da secularização, tornar-se moderno através duma mitigação da fé? Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo vivida hoje de um modo novo, para se tornar uma realidade que pertença ao presente. Para isso ajuda não a mitigação da fé, mas somente o vivê-la integralmente no nosso hoje. Esta constitui uma tarefa ecuménica central.“ Sim, doutro modo o catolicismo para ser moderno teria que andar sempre a correr atrás do protestantismo e este sentir-se-ia sempre na dianteira com a exigência de que o catolicismo se mude na sua direcção.
“Se o olhar se fixa nas realidades negativas, então nunca mais se desvenda o grande e profundo mistério da Igreja”.
Alude também à perplexidade de confissões históricas perante novas formas de cristianismo, muito dinâmicas mas “ por vezes preocupantes nas suas formas” tratando-se frequentemente de “um cristianismo de escassa densidade institucional, com pouca bagagem racional, sendo ainda menor a bagagem dogmática, e também com pouca estabilidade. Este fenómeno mundial põe-nos a todos perante esta questão: Que tem a dizer-nos de positivo e de negativo esta nova forma de cristianismo? “
“Em certo sentido, a história vem em ajuda da Igreja com as diversas épocas de secularização, que contribuíram de modo essencial para a sua purificação e reforma interior. De facto, as secularizações (expropriação de bens da Igreja, cancelamento de privilégios, etc.) – sempre significaram uma profunda libertação da Igreja de formas de mundanidade: despojava-se, por assim dizer, da sua riqueza terrena e voltava a abraçar plenamente a sua pobreza terrena”.
Falando da Igreja, o Pontífice recorda: «Eu sou a videira verdadeira»: isto na realidade, porém, significa: «Eu sou vós, e vós sois Eu» - uma identificação inaudita do Senhor connosco, a sua Igreja….” É consolador ler-se esta frase dum pontífice que é não só o grande intelectual/teólogo da época moderna mas também um místico. Nestas palavras por ele ditas pode sentir-se o surgir duma nova teologia que consegue passar do diálogo grego para o triálogo cristão. Nas liturgias que celebrou na Alemanha ele mostrou que é possível juntar intelecto e devoção a ponto de transformar eventos de muitos milhares de pessoas numa missa ou numa para-liturgia em momentos de alta devoção, de espírito recolhido e meditativo. Foi impressionante ver como milhares de pessoas se mantinham durante minutos em silêncio meditando nas palavras das suas homilias.
O Papa aponta para a vida cristã solicitando uma visão lúcida da mesma. Sim, não tem sentido esforçar artificialmente uma união dos cristãos quando a diversidade também é uma oportunidade de satisfazer diferentes rescritos de personalidade e de salvação. Os cristãos das diferentes mansões são irmãos e devem-se respeitar uns aos outros complementando-se. Quem critica por criticar ou julga com ressentimento/fanatismo não percebeu nada de cristianismo e menos ainda de fé cristã.
” Sei que muito se faz, da parte dos alemães e da Alemanha, para tornar possível a toda a humanidade uma vida digna do homem, e por isso quero aqui exprimir uma palavra de viva gratidão.”
O Santo Padre admitiu que a Igreja da sua terra natal “está optimamente organizada”, mas criticou nela “um excedente das estruturas em relação ao Espírito”. Talvez pelo facto dela se encontrar demasiadamente preocupada com os protestantes e demasiadamente preocupada com teologia e menos com espiritualidade. Já há muito tempo o Vaticano vê com relutância o facto de nas zonas cristãs de língua alemã se exigir um imposto dos cristãos para a igreja. Também por isso, Bento XVI incita a Igreja alemã a comunicar do espírito alegre doutras regiões católicas. “A Igreja na Alemanha continuará a ser uma bênção para a comunidade católica mundial, se permanecer fielmente unida aos Sucessores de São Pedro e dos Apóstolos, se tiver a peito de variados modos a cooperação com os países de missão e se nisto se deixar «contagiar» pela alegria na fé das jovens Igrejas.”
O serviço da Igreja além duma componente de competência objectiva e profissional “exige-se algo mais, ou seja, o coração aberto, que se deixa tocar pelo amor de Cristo, e deste modo é prestado ao próximo, que precisa de nós, mais do que um serviço técnico: o amor, no qual se torna visível no outro o Deus que ama, Cristo.”
Admoesta os bispos e quem tem cargos a servir na humildade dizendo: «Jesus, que era de condição divina, não quis ter a exigência de ser posto ao nível de Deus. Antes, a Si próprio Se despojou, tomando a condição de escravo…» (Flp 2, 6-8). A Auto-realização é uma consequência duma tarefa e vivência e nunca um fim em si mesma.
“Não é a auto-realização que opera o verdadeiro desenvolvimento da pessoa – um dado que hoje é proposto como modelo da vida moderna, mas que pode facilmente mudar-se numa forma de refinado egoísmo. Bento XVI já antes dizia: “faz-se uma espécie de terapia ocupacional; procura-se para cada qual um grémio ou pelo menos alguma actividade na Igreja… Não precisamos duma igreja mais humana, mas sim duma mais divina, então ela também será verdadeiramente humana.” O papa, afirma com os padres da Igreja: ”Deus fez-se Homem para que o Homem seja divinizado”.
„Não são as palavras que contam, mas o agir, os actos de conversão e de fé…. Agnósticos que, por causa da questão de Deus, não encontram paz e pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e sentem desejo dum coração puro estão mais perto do Reino de Deus de quanto o estejam os fiéis rotineiros, que na Igreja já só conseguem ver o aparato sem que o seu coração seja tocado por isto: pela fé.”
Expressou também o sofrimento dos cristãos que são hoje os mais perseguidos e intolerados no mundo: “Às vezes sentimo-nos como que sob uma prensa, à semelhança dos cachos de uva que são completamente esmagados. Mas sabemos que, unidos a Cristo, nos tornamos vinho generoso”.
Uma sociedade extremamente masculina que impôs a masculinidade também à mulher revela-se especialmente agressiva contra uma igreja onde a feminidade é guardada a nível de fé.
O momento histórico que momentaneamente se atravessa não é o mais propício a reformas profundas. O Papa aposta primeiro na reforma das mentalidades, na vivência da fé e critica os dignitários que não se guiam pelo espírito de serviço e amor.
Se a terra precisa do seu húmus também a comunidade precisa do seu húmus e este é a humildade. Bento XVI explica: “a humildade é uma virtude que no mundo de hoje e, de modo geral, de todos os tempos, não goza de grande estima. Mas os discípulos do Senhor sabem que esta virtude é, por assim dizer, o óleo que torna fecundos os processos de diálogo, possível a colaboração e cordial a unidade. Humilitas, a palavra latina donde deriva «humildade», tem a ver com humus, isto é, com a aderência à terra, à realidade. As pessoas humildes vivem com ambos os pés na terra; mas sobretudo escutam Cristo, a Palavra de Deus, que ininterruptamente renova a Igreja e cada um dos seus membros.”
Apesar de todas as tempestades da história, a barca de Pedro tem-se mantido firme sobre as ondas do tempo e revela-se como a garante da continuidade desde os primórdios do cristianismo até á actualidade. Há que ser optimista e viver a alegria!
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
(1) É verdade que o Papa funciona como uma espécie de constituição ou como o tribunal constitucional da Igreja. A sua preocupação não é muitas vezes a do padre que trabalha in loco. Aqui dá-se o encontro do pastor com a consciência individual pressupondo-se compromissos (casuística) que a nível de constituição não estão previstos (comunhão a separados, preservativo, não podendo tratar todos os divorciados da mesma maneira. Há muitos que sofrem sob o amor quebrado). A misericórdia é um característico cristão que abre muitas perspectivas pastorais.
(2) Apenas um reparo sobre a hipocrisia do mundo: os pares querem fidelidade sexual e acham mal que o papa a exija. Críticos acusam o Papa de ser monarca ao escolher os seus ministros e aceitam como natural em democracia que o primeiro-ministro escolha os seus ministros. O discurso público não conhece a sabedoria cristã, apenas a sua moral ou os seus aspectos folclóricos. Para mais a sexualidade é um pequeno ponto entre muitos outros. As pessoas perdem-se nas proibições.
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