terça-feira, 4 de outubro de 2011

INTIMIDADES


QUE PENA TER SIDO?

Bem, devo confessar que também eu fui marxista-leninista.
Não que veja isso como uma mácula na minha vida, ou queira aqui fazer a confissão do meu arrependimento.
Simplesmente encaro esse facto de uma maneira diferente. Vejo-o apenas como um dos muitos momentos que em conjunto perfazem o percurso da minha existência e uma vez que passou, a esse nível, tão ou tão pouco importante como quaisquer outros, todos eles, por serem historiográficos, passíveis de racionalmente serem encarados e compreendidos.
É verdade, também eu fui marxista-leninista.
A afirmação é digna de registo pelo facto de eu ser e, provavelmente, sempre ter sido o oposto daquilo que poderemos destacar como o estereótipo do indivíduo feito à luz dessa cosmovisão e, mais relevante, dado as minhas ideias fundamentais sobre a vida da humanidade e até os mais decisivos valores com que parto para enfrentar as marés do quotidiano serem completamente incompatíveis com os pressupostos daquelas correntes políticas.
Olhando para trás com o alcance e a nitidez que a memória consente, posso identificar uma tríade que é constante nas minhas preocupações. Com efeito, encarando as alterações, na sua formulação, como o resultado directo do meu crescimento intelectual, basicamente permanecem as referências da liberdade, da solidariedade e do compromisso de combater a pobreza. Verdadeiramente, sempre foram estas as minhas principais motivações para eventuais movimentações cívicas de carácter político ou não. Seja como for, mentiria se o negasse ou fugiria à realidade se omitisse aquela opção pretérita.
Como um sujeito com índole e educação abertas, isto é, não assentes em dogmas nem em outras cartilhas que não alguns valores tidos como justos e bons, como uma pessoa assim pode ter querido ser comunista –isto para utilizar aquela fraseologia do marxismo-leninismo clássico ou seja, aquele que, vindo na tradição do bolchevismo da revolução russa, optou pelos pontos de vista chineses por ocasião do cisma que o vigésimo congresso do Partido Comunista da União Soviética provocou no movimento comunista internacional- eis uma pergunta interessante, possivelmente capaz de propiciar respostas com aplicações exteriores ao próprio indivíduo.
Porque fui marxista-leninista? Porque aderi ao marxismo-leninismo?
Ora, porquê… Fui. Para mim é tudo quanto basta. Não me preocupo muito com essas razões. Fui, deixei de ser e acabou-se, ponto final. No que de pessoal contenha, nunca me pareceu chão que desse muita uva. Mas fui, tinha então quinze, dezasseis anos de idade, entre os meses de Outubro Novembro de setenta e quatro e a Primavera do ano seguinte, quando por essa ordem aderi e rompi com a referida ideologia.
Foi com a minha participação na comissão cultural da Vélhinha, entre meados de Maio e o fim do ano de setenta e quatro que eu concretizei aquela adesão. Embora tenha sido o Rui Madeira o principal mentor e impulsionador daquela comissão, desde cedo se formaram duas correntes distintas que partiam de pressupostos diferentes e, em conformidade, propunham planos de trabalho diferenciados. Ao fundador que achava que a comissão cultural se deveria empenhar em apresentar realizações recreativas e de índole cultural para os sócios da colectividade, opunha-se o Henrique Cantante, jovem trabalhador nos Telefones de Lisboa e Porto, para quem a comissão deveria ter um carácter essencialmente político, pelo que os seus membros teriam maior utilidade se se dedicassem a actividades de esclarecimento político e ideológico, acrescentava o Zé Martins que o secundava em tudo.
Sem o meu apoio e de um outro Madeira, o Rui José, as opiniões que preponderavam eram as mais radicais.
Corolário da gracinha, recordo um convívio dançante, numa tarde de Domingo, abruptamente terminado em nome do combate aos comportamentos e hábitos burgueses, seguindo-se-lhe uma sessão de cantigas revolucionárias em que o agitador cantou desafinadamente a canção “Fogo”, de Tino Flores.
Contudo, nessa efervescência deu-se o meu abraço à ideologia redentora.
E, na verdade, tudo parecia conforme com os meus mais profundos desejos. Pois não falavam os camaradas chineses em liberdade de pensamento e de crítica e não era em nome dessa liberdade que eles, a respeito do melhor caminho a seguir pelo socialismo, divergiam dos comunistas russos? E, afinal, pelo mui importante facto de aí acabar a pobreza, não era o socialismo uma sociedade mais avançada e mais justa que a democracia ou, como se dizia nesses dias ainda não muito doutrinados, a simples democracia? E que dizer da liberdade, esse paradigma, não seria só possível quando todos tivessem as mesmas condições para singrarem na vida? Lá havia a revista “Nova China” e o “Pequim Informa” para o confirmar e nos mostrar como o socialismo tinha feito milagres e, para além disso, toda uma série de publicações pirata que bem claro deixavam como os trabalhadores, ali, vivam num autêntico paraíso.
O resultado foi o tal mergulho.
O que posteriormente fui encontrando era a hipocrisia de muitos dos militantes mais responsáveis –ele havia o Gracioso que fechava a mulher em casa e saía para a vida do partido, onde, além das pichagens, colagens e afins, procurava molhar o bico em qualquer situação que vislumbrasse poder entrar água por baixo da suas pernas.
Pior, para meu espanto, era a completa falta de liberdade e o reconhecimento que aquela gente pouco ou nada se importava com a melhoria da qualidade de vida dos pobres, incomodando-os mais as riquezas da minoria privilegiada e, como então muitos deles acresciam, parasitária.
Isto dando de barato o policiamento dos comportamentos pessoais, o que, no meu caso pessoal, poucos constrangimentos me trouxe pela simples razão de jamais ter militado em qualquer dos agrupamentos políticos de um tal quadrante.
Assim vim a entrar em ruptura e pouco depois a abandonar o marxismo-leninismo.
Na época, recordo-o bem, durante um curto período de alguns meses, poucos, ainda considerei a hipótese de me tornar anarquista, mas nunca cheguei a sê-lo.

Alhos Vedros/Alvalade do Sado, 14 e 15 de Fevereiro de 1996

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Policiar o pensamento, as ideias nunca deu bom resultado.

Não há machado que corte
A raiz ao pensamento.

Por isso, continuamos a luta em busca dum ideal...

... que, por definição, é inatingível!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Tal e qual.

Aquele abraço, companheiro
Luís