AQUI POSTO DE COMANDO DAS FORÇAS ARMADAS
Tanto para mim como para alguns amigos dos meus, a quinta-feira, vinte e cinco de Abril de mil novecentos setenta e quatro, foi um dia sem aulas.
Tinha então quinze anos de idade e, com isso, não se pense que eu era, de todo, um ignorante dessas coisas proibidas da política. Só pelo facto de ser nado e criado numa vila com história no movimento operário e oposicionista à ditadura do Estado Novo, dificilmente me passaria despercebida a existência desses tabus e, naturalmente, muitas seriam as probabilidades de lhes vir a conhecer os enredos. Mas, sobretudo, acontecia que os adultos da minha família não morriam de amores pelo regime e, se em frente das crianças se abstinham de algumas abordagens, muitas vezes deixavam sair os seus comentários e não era preciso ser lá muito esperto para se perceber os seus ideais liberais e democráticos. Em sessenta e nove, por exemplo, recordo a garrafa de espumante que o meu pai e o seu irmão mais velho abriram para comemorar a vitória da oposição na freguesia, ainda que a mesma tenha sido irrelevante. Lembro bem não só a alegria, como também o ambiente de silenciosa conjura com o que fizeram.
“-Vá lá cunhada.” –Invectivava o meu tio a minha mãe para que tomasse parte na comemoração. “-Bebe também um gole que, pelo menos aqui, aqueles tiranos não se ficaram a rir.”
Além do que para dois dos meus primos mais velhos, as rebeldias de juventude se confundiam com a frequência de certos meios, política e até socialmente pouco recomendáveis, tais como certas colectividades e cine-clubes, da região, onde pululavam os agitadores.
Mesmo com muitos dos miúdos com quem melhor me relacionava acontecia o mesmo. O Rui Madeira, com quem meses antes lera um livrinho de Jean Bruhat sobre Marx e Engels, tinha uma prima que estudava no Técnico, em Lisboa e que lhe falava daqueles nomes e de Lenine, da revolução russa e da revolução chinesa e depois dizia que os russos eram revisionistas pois tinham traído a causa do povo, como me explicava o primo, quando, por vezes, as conversas entre os dois versavam aqueles géneros de assuntos.
E até tínhamos aventuras nos nossos curriculum o que, no meu caso, bastava ser a frequência da casa de um doutor qualquer que residia no Barreiro e que, de quando em vez, atirava aviões de papel com mensagens subversivas pela janela do sétimo andar. Tenho a certeza que, da primeira vez, o olhei com a admiração de quem tem pela frente um autêntico Geraldo Sem Pavor.
Bem sei que para muitos foi o vinte e cinco de Abril um dia empolgante, em certos aspectos, quase diria épico. Para não falar daquela massa de gente que, em expectativa e apoio aos revoltosos, a partir do meio da tarde começou a invadir os cenários públicos da convulsão e, só para citar um nome, registo Francisco de Sousa Tavares que, no Carmo, em nome e em auxílio dos militares, incentivava o povo a permanecer calmo e em ordem, enquanto decorria a negociação para a rendição de Marcelo Caetano e, com ela, formalmente, a queda do regime. Antes de todos, em primeiríssimo lugar, está o Capitão Salgueiro Maia, quanto a mim, figura digna do panteão dos grandes heróis nacionais.
Tais são as memórias de quem assistiu, não em directo, como hoje em dia se gosta de sublinhar, mas ao vivo, ao derrube de uma tirania.
Sem embargo, no que me diz respeito, é como lhes disse, já não sendo um ceguinho quando a revolução dos cravos estalou, mentiria se aqui pretendesse outra coisa; o dia vinte e cinco de Abril foi, sobretudo, um dia sem aulas e nada para fazer.
O meu primeiro contacto com os acontecimentos foi um comunicado do MRPP que li, numa tarjeta, entre as muitas que estavam espalhadas pelos passeios. Como tinha aulas matinais no Liceu do Barreiro, costumava tomar a camioneta da carreira do Montijo por volta das sete e trinta e ainda não tinha compreendido a comunicação que alertava a população para o perigo de se envolver no que supostamente era um golpe dos ultras do regime capitaneados por Kaúlza de Arriaga, quando um rapaz de rádio ao ouvido me explicou que não se sabia bem o que era. A Emissora Nacional estava a transmitir música e de vez em quando liam um comunicado de um movimento das forças armadas, em que se pedia à população para permanecer calma e fazer a sua vida normal e em que se afirmava estar em curso um golpe militar para acabar com o regime. Chegado à escola, todo eu curiosidades, o Victor Matos, com um tio paterno a cumprir pena em Peniche, tratou de me avisar para ter cuidado que por ali andavam agentes da PIDE. Devo confessar que, mais tarde, apurámos que se tratavam de indivíduos que, ao abrigo da lei militar, se propunham a prestar provas para uns quaisquer exames.
Logo na primeira aula, alguns dos alunos bombardearam a Professora de Francês com perguntas. Ninguém deu matéria, o Professor de História chegou a falar no problema da guerra em África e, pelo fim da manhã, fomos todos para casa, dado o estabelecimento de ensino encerrar as portas para o resto da jornada.
De tarde lá me encontrei com uns quantos amigos que, tal como eu, tinham ganho um feriado inesperado.
É verdade que, ao princípio da noite desse mesmo dia, desfilou entre o Barreiro e o Lavradio uma manifestação de apoio e reconhecimento ao Movimento das Forças Armadas e à Junta de Salvação Nacional que iria provisoriamente governar o país e após o jantar, quando reencontrei os meus amigos na colectividade do costume, já todos sabíamos que tinha acontecido uma grande mudança política.
Contudo, nessa tarde, eu e mais dois ou três amigos, se não estou em erro o Rui, o Luís Carlos e o ZÉ Carlos Simas, passámo-la a jogar a um jogo que consistia em atingir com uma garrafa a garrafa de um adversário, vencendo aquele que partisse a do outro, com a regra que ditava, sempre que o nosso vidro tocasse o do concorrente, tínhamos o direito de repetir a jogada.
Quanto a mim, a curiosidade está no facto de ter sido a única vez que participei em tal género de jogatina.
Portalegre, 19 de Fevereiro de 1998
2 comentários:
Nunca tinha ouvido falar...
no tal jogo da garrafa!
Em contrapartida já ouvi falar de tudo o que relatas. Lamento que as consequências desse maravilhoso dia que vivemos se estejam a diluir nas nossas memórias e nas nossas vidas...
Esse meu dia foi igual ao de muitos (muitos mais do que seria de esperar atendendo ao analfabetismo vigente) que, após a hesitação inicial sobre da origem do golpe, se manifestaram das mais originais maneiras...
A minha originalidade foi circunstancial. Morava num segundo andar e um casal jovem no terceiro. Nesse dia, eram quase oito horas, estava a preparar-me para sair para o trabalho com a Arlete, quando tocaram à porta. Espreitei para ver quem era o desavergonhado que se atrevia a tocar a horas tão matinais e verifiquei que era o vizinho de cima. Para além do bom dia, boa tarde e boa noite, nunca tínhamos trocado outras palavras.
- Vizinho, já ouviu o que estão a dizer na rádio e televisão?
- Não, não! O que é?
- Houve um qualquer golpe e estão a aconselhar toda a gente a não ir para Lisboa!
- Obrigado vizinho!
Desde esse dia, nunca mais deixei de ligar pelo menos o rádio, quase sempre a televisão, para ouvir as novidades em primeira mão e assim quando houver outro 25 de Abril eu não o vou perder! Agora já não tenho vizinho do terceiro andar!
Só muito tarde nesse dia me apercebi que o comandante da minha Companhia em Angola, Otelo S. C., é que tinha sido o comandante operacional do golpe. Eu e a Arlete ainda hoje pensamos que eu teria estado no grupo de comando se tivesse continuado na tropa mais algum tempo!
Os heróis da nossa juventude não mudam, não envelhecem, não fazem asneiras... Otelo continua a ser o meu herói...
Abraço,
António
Faço meu o teu lamento e é como dizes, a esperança que Abril abriu transformou-se no desespero de quem tem assistido mais ou menos impotente ao saque que de Portugal tem feito terra queimada, onde voltamos a ter o cenário de muita gente que empobrece trabalhando e o bom senso é tudo quanto basta para que entendamos ser essa uma das maiores indignidades.
Mas tenho para mim que o 25 de Abril foi o depois, a fim de Peniche e Caxias e tudo o que, para o bem e para o mal se seguiu e quando me falam dos excessos, sempre fico pensando que alternativa teria havido naquela época e nas contingiências que se verificaram.
Mas por pensar assim, quis aqui antes dar um quadro dos simples vivendo fora dos palcos principais, como Lisboa e que, nesse dia, ainda se fizeram à vida na indiferença com que o tinham feitas nas praticamente cinco décadas anteriores; na metáfora, jogando à garrafa, cada qual à sua maneira.
Ai o Otelo, o Otelo que foi herói e disso não tenho a menor dúvida e assim continuará, até pelo que dizes; é, ele próprio uma das melhores alegorias de Abril. Um dia, haverá um Mestre que da sua vida fará o conteúdo de um romance épico.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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