Ignorância e estupidez
Por Rudesindo Soutelo(*)
“A gente inteligente que eu conheço só tem um sonho: sê-lo menos”[1] declara o cineasta francês Claude Chabrol numa entrevista publicada nos Cahiers du Cinéma. Há uma crença que identifica a ignorância com a felicidade –o mito do “bom selvagem”, a bondade da pessoa simples, o ideal da intranscendência pós-moderna– mas que nada tem a ver com o “só sei que nada sei”, frase atribuída a Sócrates e que assume a ignorância como um motor da sabedoria. O filósofo grego era consciente de que o seu saber estava limitado pela sua ignorância e isso impulsionava-o na procura do conhecimento. Aqueles que desconhecem a dimensão da sua ignorância são precisamente os que ousam proclamar-se de sábios.
Platão mostra-nos, no mito de A caverna[2], a perceção do mundo que o ignorante desenvolve quando se apoia unicamente no senso comum. Moradores permanentes no fundo da caverna, a única visão que têm do exterior são as sombras dos transeuntes que se projetam na parede última da gruta, e julgam que essas sombras são a realidade. Um deles consegue fugir dali e descobre que as sombras são produzidas por pessoas, semelhantes a ele, que transitam pelo caminho à frente da entrada da caverna. Esse descobrimento faz-lhe pensar no engano em que vivem os seus companheiros e regressa ao interior para libertá-los daquela ignorância mas eles tomam-no por louco, por inventor de mentiras, e acabam matando-o. Sócrates também foi condenado à morte por mostrar uma realidade diferente da que os atenienses, ilusoriamente, viviam. A realidade virtual, que hoje vivemos, não diverge muito da que se vivia na caverna de Platão.
Na citada entrevista, Claude Chabrol também diz que a “estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência, infinitamente mais profunda”[3] e argumenta –desde a perspetiva do realizador cinematográfico que vê as pessoas como personagens a serem tratadas num filme– que a estupidez é muito enriquecedora pois, ao contrário da inteligência, não tem limites.
A ignorância ativa, aquela que se ignora a si mesma, não procura a sabedoria e despreza o entendimento ou inteligência. O filósofo alemã Arthur Schopenhauer, na sua obra O mundo como vontade e como representação, diz-nos que “Carência de entendimento se chama estupidez”[4]. Mas não devemos confundir essa carência com o analfabetismo básico pois a iliteracia tem graus académicos, poder, dignidade e dinheiro. Ouçam as musiquetas ordinárias, que se utilizam em tantas celebrações universitárias. A cultura da estupidez é a indústria que nos mantém na caverna.
Carlo Maria Cipolla, historiador e filósofo italiano, num livro com título musical, Allegro ma non tropo, inclui um ensaio onde estabelece as cinco leis fundamentais da estupidez humana. As duas primeiras leis dizem respeito ao número de estúpidos em circulação, sempre superior ao estimado, e à distribuição, como uma constante independente de qualquer outra característica dos indivíduos, confirmando-se a mesma frequência em todos os grupos de amostragem, inclusivamente nos Prémios Nobel.[5]
Partindo das quatro categorias fundamentais em que inclui o ser humano –ingénuos, inteligentes, bandidos e estúpidos– a terceira lei esclarece que: “Uma pessoa estúpida é aquela que causa um dano a outra pessoa ou a um grupo de pessoas, sem retirar qualquer vantagem para si, podendo até sofrer um prejuízo com isso”[6]. É compreensível o bandido que causa um dano para obter um ganho, mas a irracionalidade do estúpido é desconcertante. O estúpido é imprevisível e perseguir-nos-á sem razão nas circunstâncias mais impensáveis porque o estúpido não sabe que é estúpido, não tem malícia nem remorso, e aí reside a sua eficácia devastadora. Mas sempre desvalorizamos o potencial nocivo das pessoas estúpidas, como afirma a quarta lei, e, em vez de os combater, facilitamos o seu acesso às áreas do poder. Quando no governo proliferam os bandidos com uma alta percentagem de estupidez e, simultaneamente, aumenta o número de ingénuos entre os governados, a ruína é segura. “O estúpido é o tipo de pessoa mais perigosa que existe”, conclui a quinta lei.[7]
Theodor Adorno diz-nos que a indústria cultural “domina e controla, de fato e totalmente, a consciência e inconsciência daqueles aos quais se dirige”[8]. A cultura ‘industrial’, feita em série e com padrões de arte menor ou mesmo de lixo, projeta sombras de ignorância no fundo da caverna, onde a estupidez é a felicidade do ignorante.
[1] Collet, J., Delahaye, M., Fieschi, J.-A., Labarthe, A. S., & Tavernier, B. (2004). Entrevista con Claude Chabrol. In La Nouvelle Vague (M. Rubio, Trad., pp. 23 - 54). Barcelona: Paidós Ibérica, p. 43.
[2] Platão. (2008). A República (11ª ed.). (M. H. Pereira, Trad.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 514ª-518b.
[3] Collet, J. et al., op. cit., p. 42.
[4] Schopenhauer, A. (2005). O mundo como vontade e como representação. São Paulo: UNESP, p. 68.
[5] Cipolla, C. M. (2008). Allegro ma non troppo. Lisboa: Texto & Grafia, pp. 59-63.
[6] Cipolla, C. M., op. cit., pp. 69-70.
[7] Cipolla, C. M., op. cit., pp. 84-85.
[8] Adorno, T. W. (2010). Indústria cultural e sociedade. (J. M. Almeida, Ed.) São Paulo: Paz e Terra, p. 114.
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