terça-feira, 25 de outubro de 2011

INTIMIDADES


VOCAÇÕES

Entre os amigos do pai contava-se e, graças a Deus, ainda se conta a figura do Dr. Neves da Costa, médico na vila e da família e que a partir da minha puberdade também a mim passou a medicar os paliativos para as constipações e gripes mais acicatadas. Era pessoa chegada que, em muitas ocasiões, parlamentou com o meu progenitor, portas a dentro, se bem que maioritariamente a propósito de assuntos da vida do hospital da Santa Casa de que o primeiro era o Director Clínico e o segundo o Provedor e aí quasi sempre a sós, no escritório, não poucas vezes por mera acção de cortesia e, então, no seio do serão parental que se fazia na sala. No café, para aqueles ócios de conversas de homens após o jantar, eram companheiros de mesa e nas inúmeras situações em que o chefe da casa se queria acompanhado pelo herdeiro, terão sido tantas as vezes que pediu para se sentar como aquelas em que foi ele a conceder a permissão, inevitavelmente com o regulamentar soerguer das ancas e do tronco.
O Dr. Neves gostava de mim e divertia-se com as perguntas que me fazia sobre a História de Portugal, pelas quais me escutava os nomes certos de reis e rainhas, batalhas e outros eventos especialmente importantes. Pela minha parte correspondia-lhe o sentimento e se o esfregar dos cabelos com que habitualmente me recebia não seria muito do meu agrado, já me deliciava o facto de ele me tratar como um homem qualquer e até de indagar a minha opinião em algumas matérias. Era o melhor prémio para aqueles treinos da vida de adulto. Durante os mais tenros anos, após a minha entrada no mundo escolar, foi sua imagem de proa a pergunta que, para ele, provavelmente era uma forma de me dar as boas vindas:
“-Então rapaz, diz-me lá o que queres ser quando fores grande?”
Porque a fazia não sei e, naturalmente, também nunca o explicou. Tão só recordo que a minha resposta era inevitavelmente a mesma:
“-Quero ser cientista.”
A afirmação era sincera e sentida. Na realidade, e desde já pedindo perdão por eventuais gabarolices, fui gaiato curioso e sempre me interessei pelas explicações de variados fenómenos de natureza física ou animal. Pedia para me comprarem livros e revistas que lia ao jeito de náufrago buscando uma tábua e quando algo me escapava, não me cansava de maçar os adultos com a demanda do clarear das ideias.
Humildemente peço que não façam juízos excessivos daquilo que lhes estou a narrar.
A definição da minha opção era clara, mas as motivações amalgamavam-se entre o sonho com aventuras arqueológicas e o desejo de descobrir curas para doenças letais. Na verdade, vistas agora as coisas à distância a que estão, parece-me que me via num misto de cabelos empinados entre tubos de ensaio e a lupa acocorada sobre o movimento de um insecto ou a imutabilidade de um qualquer calhau. Não nos esqueçamos que estamos a falar de projecções de miúdo. Tal era a minha vocação ou, pelo menos, era essa que eu achava ser a minha inclinação. Também um dia quis ser piloto e, por uns tempos, encarei a possibilidade de, por exemplo, vir a ser futebolista. No entanto, foram aspirações passageiras e, que me lembre, a única que me acompanhou ao longo da vida e, em parte, motivou a posterior escolha académica, essa foi a minha predilecção pelas explicações científicas, os seus métodos e técnicas, as suas formas simples mas elegantes, para tornar evidente aquilo que antes não era, deixando-nos, amiúde, a sensação de tão grande simplicidade que nos perguntamos se mesmo nós, uns leigos, também não teríamos visto o problema dessa maneira. Daí o gosto e o prazer com que hoje faço, com toda a modéstia, por mui simples que o seja, alguma ciência, sem com isso pensar em receber a mínima retribuição. Fique bem claro, nada há de altruísmo nisso. Por um lado são consideráveis as razões literárias que estão por detrás da minha decisão e, cumulativamente, como já disse, está o gozo juvenil que sempre senti na solução de problemas.
Contudo não foi esse o abraço da minha vida, não foi por aí que eu acabei por querer canalizar as minhas energias. Como o sabeis, esse caminho foi, afinal, o das letras.
Sou a primeira pessoa a espantar-se com uma alteração assim. Tanto mais se não omitir que a minha primeira redacção, na primeira prova que prestei no baptismo da escola primária, consistiu na frase liminar, eu gosto muito de arroz doce, pomposamente intitulada, o arroz doce. Logicamente já atentei no assunto, mas não foi o muito cogitar que me trouxe alguma luz para o mesmo. Para falar francamente, nem eu sei porque escrevo. Tudo quanto sei é que não consigo deixar de o fazer e isto tão só devido à contingência de no meu cérebro se formarem enredos e personagens, sem que seja essa a minha vontade e de me sentir mal se não passo tudo isso para o papel. Trata-se simplesmente de um dom que Deus me deu, pelo qual me sentirei eternamente agradecido e jamais, em qualquer circunstância, envaidecido por isso. Tenho até uma teoria a esse respeito, a qual se baseia na explicação de um facto singular na minha vida. Tem a ver com o meu primeiro texto literário, uma poesia que, infelizmente perdi, mas cujo início nunca esquecerei. Escrevi-a aos onze anos de idade, estava de férias nas termos do Luso e, de então para cá, não mais parei de alinhavar a minha prosa.
Porque isso aconteceu?
Ele houve uma certa influência de alguém, um rapaz chamado Joaquim José, à época estudante em Coimbra, a quem não mais encontrei, mas que, nessas semanas que passámos no mesmo hotel, muito me fez saber sobre a repressão política da altura e muitos outros variados temas, em que é possível incluir coisas tão díspares como a ovnilogia. Era um jovem inteligente e culto que me deixava desconcertado pelo à vontade com que participava nas conversas dos homens e muito mais pela capacidade que revelava em opinar de modo a que eles concordassem com as suas ideias.
Foi pois para esse indivíduo que, repito, não voltei a ver que eu escrevia a minha primeira peçazinha e com ela, sem o saber, dei início a este mergulho nos jogos das palavras, do qual não mais regressei à superfície.

Alhos Vedros, 23 de Fevereiro de 2011


2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

As escolhas da nossa infância têm a perenidade de uma bola de sabão: são as profissões, são os ódios, são os amores...

É o nosso treino para a vida que essa, sim, é sempre a sério. Nem a propósito, uma amiga colocou hoje no facebook, esta passagem dos Sargos:

"Todas as escolhas que fazemos têm algo em comum - são definitivas. Ainda se pudéssemos ensaiar, experimentar... mas não. Não são permitidas experiências. A vida é sempre a sério." - António Tapadinhas, in "Sargos para o Jantar"

Abraço,

Luís F. de A. Gomes disse...

E é essa uma das razões que dela fazem a maravilha que é.

Fosse a vida um filme a que pudéssemos inverter ritmos e percursos ou apagar parcelas e, na hipótese absurda da vida ser tal qual a conhecemos, jamais nos teria sido concedida outra liberdade que não a escravatura; ainda estaríamos presos no Egipto, nos Egiptos de toda a Humanidade.

Aquele abraço, companheiro
Luís