terça-feira, 18 de outubro de 2011

INTIMIDADES



A MINHA PRIMEIRA NAMORADA

A Júlia foi a minha primeira namorada. Era filha da vizinha Natália e vivia num rés-do-chão de telha vã, no enfiamento de um dos lados da praça imperfeita onde a miudagem se arrogava de preceitos de propriedade e dava guarida a brincadeiras e a dois passos da qual se situava a porta da minha casa. Foi assim que nos vimos e nos mostrámos e isso passou-se desde que os meus calçõezinhos se apeteceram de rabear pelo piso arenítico do jardim. Entre a meia dúzia de miúdas que por ali orbitavam com idade rondando a minha, foi por ela que o meu beicinho se deixou cair. São coisas do coração, não há em elas razões que tenham a ver com a nossa vontade.
Eis então a Júlia, o meu primeiro amor.
Tudo contado, desde o momento da primeira jura de eterna paixão, com os interregnos esperados entre quem cresce, ainda namorámos três anos. Sucedeu desde os dez anos de idade do último degrau da instrução primária até aos treze da minha entrada para o Liceu. Ela é um ano mais velha.
Oh se crescemos juntos…
Enfrentámos muita saraivada e, sempre cúmplices, nunca perdemos a confiança mútua e uma solidariedade quase sem limites. Da incólume passagem pela agressão de um quarteto de mariolas, no Barreiro, quando no caminho de uma das primeiras idas à escola preparatória, às opas de silêncios sobre aquilo que os outros não deveriam saber, acrescentando ainda a partilha do estudo e dos saberes e até os incentivos para as responsabilidades escolares e outras, foram muitas e diversas as nossas experiências conjuntas e se fomos aprendendo com elas…
Posso registar com carinho, agora que praticamente um quarto de século passou sobre a hora de finados, tratou-se de um triénio prenhe de laços e alegria que teve o seu momento mais alto no Verão que se seguiu à dispensa dos exames de aprovação no Ciclo Preparatório, durante o qual, nos meses de Julho e Agosto, tive o prazer da sua companhia na casa balnear que os meus pais possuíam em Sesimbra. Quando em Setembro seguia a caminho do Luso, para as três semanas que a família ali costumava passar, a fim de os meus pais usarem as recomendações termais, nesse ano sentia-me o miúdo mais feliz do mundo.
Obviamente a mãe dela tinha confiança em mim o que não era nada de espantar. Afinal, eu era filho de uma família decente e respeitada e sob os meus tectos tinha ela acesso a programas televisivos e discos ou pistas de automóveis e carros telecomandados, além dos livros e de modo algum passaria pela cabeça de alguém ver algum mal nisso. No que me toca, também eu era da casa e tinha toda a liberdade de entrar enquanto os seus pais cumpriam as jornadas fabris de sustento.
Começou por ser uma relação pueril, do ponto de vista do afecto nada mais que sucessivas e quase diárias reafirmações da aliança e, no plano da carne, apenas ultrapassando os esporádicos abraços mais apertados de um ou outro pé de dança, com o encostar das coxas nos bancos das camionetas da carreira e as mãos dadas por baixo do balandrau que se fazia com as pastas e algum casaco ou blusão.
Mas foi com ela que eu fiz as primeiras aprendizagens sobre os anseios dos corpos.
A ela dei o primeiro beijo nos lábios e igualmente o primeiro no rosto. E é claro que não nos ficámos por aí. Foi pois na sua pele eriçada que os meus dedos púberes se iniciaram a percorrer e a desenhar mapas de carícias e, na ternura acanhada da vez primeira, se aventuraram a passar sob o elástico do soutien em busca de uns mamilos retesados sob o ritmo da arfagem. E as mãos baptismais que se tocaram e retocaram nos sexos um do outro, em uma ou outra ocasião nus. Demo-nos mesmo aos primeiros toques de libelinha na corola de uma flor melada e como nos sentíamos bem, cientes de estarmos plenos de céu.
Por fim a vida separou-nos. Ela entrou para a escola comercial e os estudos acabaram por nos remeter para caminhos separados, no decurso dos quais outros rostos surgiram e aos poucos ganharam predominância e tanto ela como eu nos entregámos a outros corações.
Hoje nada resta, a não ser a memória e é só ela que me possibilita reviver o meu primeiro namoro e sobretudo identificar a minha primeira namorada que, um dia, me chamou à janela e me entregou um bilhetinho escrito à mão, em papel de caderno.
“-Lê isso e devolve-me com a resposta.” - Disse ela, fechando-me a vidraça na cara, tão inesperadamente como me entregara a missiva.
Já não serei capaz de repor tudo o que lá estava escrito, mas sei que começava sem apelo nem agrado por um isoladíssimo amo-te. Só depois explicava a razão de ser daquele amor e manifestava a vontade de saber se eu estaria ou não interessado em me entender de namoro com ela.
Creiam ou não, após a leitura fiquei atónito. Senti uma arritmia repentina e uma crispação ao nível da barriga à medida que o rosto aquecia de forma assustadora até ao ponto de incómodo. Jamais experimentara aquelas sensações e se me perguntassem, no momento, certamente seria incapaz de dizer o que se estaria a passar comigo.
Contudo, no dia seguinte, eu disse-lhe que também a amava.

Crato, 20 de Fevereiro de 1996

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

A memória de um povo é feita das memórias de cada um dos seus filhos. E é bom ter estas memórias individuais para que a memória colectiva se mantenha viva.

Nessa tua (do escritor) memória está o retrato sociológico do tempo em que se passam os factos que relatas. Se nascesses hoje e daqui a quarenta anos escrevesses sobre o teu primeiro amor, a sua caracterização seria completamente diferente. Diferente, nem melhor, nem pior, sem qualquer juízo de valor...

Eça sabia: sob a nudez crua da verdade o manto diáfano da fantasia.

Eça é que é essa!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

É esse o desiderato deste projecto que assinei como Sebastião Sorumenho, dar a ver, deixando ao Leitor todo o esforço de pensar -se assim o quiser- a respeito do que lhe é mostrado, tal como dizes, sem qualquer juízo de valor.

E é curioso que cites Eça, mestre imortal da Literatura Universal, o pintor de almas e paisagens de "A Cidade E As Serras", cuja obra tomei como ponto da tradição a seguir por Sebastião Sorumenho, quando expliquei este mesmo projecto no prefácio de uma reunião de contos que titulei "Histórias da Margem Sul", de 1987 e que constituiu o segundo trabalho deste conjunto.

Na comparação dos tempos, temos sempre ocasião para as profundezas da Humanidade.

Aquele abraço, companheiro
Luís