terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



A decisão de ter um filho é um acto de enorme responsabilidade. Não tenho a certeza de estar certa ao pensar assim, pois aquilo que se verifica é que as pessoas têm filhos porque muito simplesmente se espera delas que procriem e isto por se aceitar que a procriação é uma espécie de dever de cada um, coisa que é absolutamente normal até pelo facto de ser isso que assegura a continuidade das linhagens e das sociedades e ao mesmo tempo por isso decorrer da nossa própria natureza animal. Não por acaso, quando duas pessoas casam, é vulgar que entre os planos que levam esteja a vontade de terem filhos. E o que mais acontece é que estes aparecem e isso é visto como que uma fatalidade perante a qual os futuros pais se conformam e deixam que o bebé venha. Se calhar, o mais exacto seria dizer que as mulheres se conformam, pois são elas quem afinal acaba por decidir se o deve deixar vir ou não. Duvido muito que por esse mundo fora em que a larga maioria é analfabeta e pouca cultura tem para além da que lhe advém dos costumes e da sabedoria que se vai adquirindo no convívio diário com os outros e no decurso do desenrolar da própria vida, haja muita gente que chegue sequer a considerar a vontade de ter descendência. A maioria dos homens e das mulheres nem devem falar disso e quando estas engravidam, satisfeitos ou não, tudo se resume ao encolher de ombros de se resignar em face do sucedido. Mas eu distingo a vontade do desejo. Aquela está implicitamente associada ao tal hábito de se esperar que o casal tenha prole e este é muito mais que isso, é, digamos, o apelo que alguém, independentemente dos julgamentos daqueles que o rodeiam e das influências que possam exercer, sente dentro de si para agir de uma certa maneira que, neste caso, diz respeito à paternidade. Ora o que me parece é que são muito poucos aqueles em que esse tal desejo prevaleça sobre a passiva aceitação daquilo que tem que ser e por isso não sei se poderei falar da decisão de se ter um filho, pelo menos generalizadamente não o posso. Mas mentiria se dissesse que não foi isso que se passou comigo pois, e isto sem me estar a fazer mais do que quem quer que seja, tanto eu como o Manuel desejámos ser mãe e pai. Quando casámos, para ser honesta, não tínhamos outra coisa em mente que não fosse o podermos viver juntos, para com isso termos a possibilidade de nos ajudarmos mutuamente e sobretudo nos amarmos sem barreiras. Era o que nos parecia ser o construir uma vida em conjunto e para tanto bastava-nos essa oportunidade de nos termos e a condição de acompanharmos o outro para com ele partilharmos as alegrias e as tristezas, gozarmos as primeiras e contribuirmos para superar as segundas. Seria quase inevitável não falar dos filhos se os queríamos ter ou não, mas para nós ficou logo claro que, pelo menos naquela altura, não estávamos mesmo nada interessados em tê-los. E tenho que admitir que nem era por causa daquela ideia de primeiro criar as condições materiais para os ter e muito menos por qualquer receio quanto às nossas capacidades e meios para o conseguir. Eu ter-me-ia preparado para vir a ser professora num liceu qualquer e o Manuel seguramente teria conseguido colocação como engenheiro agrícola numa firma do ramo ou mesmo no funcionalismo público. Simplesmente concordámos que seria bom aproveitarmos para saborear os prazeres da vida a dois sem termos que nos preocupar com mais alguém. E depois confesso que ambos sentimos dúvidas sobre se estaríamos suficientemente amadurecidos para criarmos um novo ser. A verdade é que nos sentíamos ainda muito novos e para nós estava completamente fora de questão não levarmos muito a sério os nossos papéis de progenitores e educadores e deixarmos, como é costume dizer, o crescimento daqueles que não pedem para nascer ao deus dará. Assim nos deixámos ficar praticamente cinco anos que, mas isso só o viríamos a saber mais tarde, quase coincidiram na íntegra com o arranque desta comunidade. Até que um dia, numa conversa de serão, se a memória me não engana, com o Gustavo e a Viviana que entretanto já estavam à espera do segundo filho, perante aquela interrogação trivial do “-E vocês, quando pensam ter um?”, ou o Manuel ou eu, embora tenha deixado transparecer a incerteza quanto ao confronto com essa hora, acrescentou que apesar disso começava a sentir-se preparado para o efeito. E foi nessa mesma noite que na intimidade trocámos impressões sobre se uma vez nos sentindo mentalmente preparados para tanto, igualmente sentíamos o desejo de que tal sucedesse. Não sei se por causa de ser filha de médico e de ter ouvido uma ou outra descrição de partos para que o paizinho tinha sido chamado por estarem a correr mal, assustava-me um pouco a ideia de fazer alguém sair-me das entranhas. Pensei então no assunto e à medida que fui matutando, comecei a sentir dentro de mim esse desejo de ser mãe que acabou por se revelar mais forte que os meus temores. E a verdade é que eu e o Manuel damo-nos tão bem, sob todos os aspectos, nem mesmo havendo a mais leve memória de alguma vez termos discutido sobre o que quer que fosse e certa noite deixámo-nos de cautelas e fomos mesmo à procura da fecundação. Tudo indica que somos pessoas férteis pois nunca experimentei a menor dificuldade em engravidar e, tanto no primeiro como no segundo, logo a partir das tentativas iniciais eu me encontrei em falta no mês seguinte. Pois foi desse modo que vim a ser mãe pela primeira vez, algo que só não foi uma total maravilha porque um estúpido acidente de automóvel ceifou a vida ao meu querido pai no terceiro mês da minha gravidez. Como ele teria gostado de conhecer os netos e de ver como eles estão a crescer saudáveis e felizes. Às vezes, quando me perco a admirar as brincadeiras que o Manuel tem com os filhos, as perguntas que lhes faz para lhes desenvolver o espírito, dou comigo a imaginar como o paizinho se haveria de sentir nas nuvens ao ensinar aos netinhos as coisas que sabia e de os ver a serem capazes de responder em pleno às suas expectativas. Depois a mãezinha veio viver connosco e foi ela que gozou o encanto de os ver medrar. Como ela ria com as gracinhas deles em bebé e com a esperteza e a inteligência que iam revelando à medida que começavam a saber usar a fala e, mais tarde, o pensamento. Era precisamente ela que muitas vezes se deixou vergar pelas lágrimas, certamente pela saudade irremediável que deixava perceber quando suspirava, era a mãezinha quem mais evocava o quanto aquele que fora o amor da sua vida, teria rido de contente perante esta ou aquela façanha dos pequeninos. Minha querida mãe, de quem agora também sinto tanta falta, sempre serena e sensata, tão silenciosa e recatada nas suas leituras e pequenas preocupações e a música nos dedos e na alma, morreu no ano passado sem sofrimento, durante o sono, tendo a Viviana, primeiro e o médico legista depois, diagnosticado uma paragem cardíaca. Infelizmente não foi dela o único óbito que entretanto se verificou entre nós. A terrível desgraça abateu-se sobre o Artur e a Graziela a quem morreu um rapaz afogado nas águas do Tejo, para onde tinha ido com os outros nas brincadeiras de uma tarde de Sábado. Por isso vedámos o acesso à albufeira da represa e estamos agora a construir uma piscina onde todos haverão de aprender a nadar. São os seus corpos que repousam sobre o pinheiro manso que está na base do lado de lá da colina do depósito de água, onde duas lápides de pedra lhes sinalizam o lugar da última morada e fazem o cemitério que escolhemos para enterrar os nossos.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...


Fui eu que eliminei o comentário anterior, pois tinha um erro ortográfico. Mas o que queria dizer era: interessante esta ideia de ter filhos por escolha. Mas também já dei por mim a pensar que se assim fosse talvez já não houvesse pessoas para escolherem ter filhos...
Fica a inquietação.
Como sempre, gostei muito.
Teresa Bondoso

Luís F. de A. Gomes disse...

E não é ela tão gostosa quando advém dos mistérios da Vida?
E aí está um deles, pois não é curioso como de uma tal atitude - mais até negativa que positiva, pois a nossa modernidade está no desejo de ter poucos filhos, o mesmo é dizer não ter muitos - decorre em grande parte o regime demográfico actual, de reduzida natalidade? E será esse um dos sinais, de como este nosso modo de vida é anti-natural? Porque não são os tantos uma simples dádiva de felicidade?
Estranho Mundo, densa Vida que por mil vezes vivida, jamais prescinde de nos empolgar - basta que nos deixemos levar nas vicissitudes das suas vagas, por vezes calmas, outras tantas amargas.
Essa inquietação - que o Branco tão bem disse e cantou - é uma vela para podermos navegar.

Pois como poderia eu deixar de gostar que goste?

Luís