domingo, 9 de dezembro de 2012

ENSAIO SOBRE O HOMEM DO ADEUS


Lisboa Imaginada, Autor: António Tapadinhas
Acrílico sobre Tela, 90x90cm
ENSAIO SOBRE O HOMEM DO ADEUS

Parte I

O senhor João Serra como espelho de um certo Portugal

O senhor João Serra nasceu em 1930. Media 1,75 m.. Tinha cabelo branco comprido que lhe caia (ma non tropo) pelos ombros e em melenas sobre a fronte aristocrática. Tinha a pele muito branca. Ostentava, mas de forma quase imperceptível, uma cárie como emblema da sua penúria financeira. Articulava bem com um sotaque lisboeta e com uma pequena afectação “chique” que se arrastava um pouco em cada final de frase e que me transporta, sempre que o oiço, ao foyer do Hotel Avenida Palace no preciso ano de 1939. Usava óculos de massa preta a fazer lembrar um Yves Saint Laurent dos anos 70. Usava quase sempre cachecóis em contraste bonito com “canadianas” de cor clara. Fez a instrução primária em casa com um professor particular. Não casou, não teve filhos, nunca viveu um grande amor, não teve profissão, viveu sempre em casa dos pais, fez a instrução primária toda em casa com um professor particular. Com ambos viveu até aos 13 anos num palacete da Rua Tomás Ribeiro em Lisboa, quando os pais se divorciaram. Depois, viveu com o pai, durante muitos anos numa casa do Restelo. O pai montou-lhe um estabelecimento comercial em Lisboa que ele deixou falir em pouco tempo. Após a morte do pai foi viver com a mãe. Com a morte da mãe inicia, como numa espécie de travessia anti-heróica, o período mais bonito e mais trágico da sua vida. O velho Dicionário da Porto Editora de 1961 diz que “solidão” é “o estado do que está só”. O estado do senhor João Serra, segundo o Dicionário da Porto Editora de 1961, era o de um homem só. Morreu no ano de 2010.
«Essa senhora é uma malvada que me persegue por entre as paredes vazias da casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de sentir gente».( Blogue O Adeus ao Senhor do Adeus, Dezembro 2010).

Um homem ao morrer, como qualquer outro ser, está irremediavelmente só. Mas um homem pode estar só e não estar, necessariamente, a morrer? Ou, pelo contrário, estaremos logo a morrer a partir do momento em que nascemos?

Quando o senhor João Serra veio para a solidão da rua para fugir à solidão da casa já estaria a morrer?

O senhor João Serra saía de casa todas as noites para fugir de si próprio, para fugir ao sofrimento de ser como era?

Que estado de alma, que acontecimento, terá produzido a gota de água que fez transbordar a taça que levou o senhor João Serra a quebrar a inércia da solidão caseira, ainda assim, confortável, para se lançar num outro tipo de solidão, menos confortável, mais barulhenta e até mais perigosa?

Terá sido a falta insuportável da sua mãe que lhe dava o escasso equilíbrio, as asas para se manter a voar? «Não voar é morrer!», terá, forçosamente, pensado o senhor João Serra naquela noite longa em que as paredes de sua casa ganharam vida.

E ganharam braços e ganharam mãos que o estrangulavam a mando daquela senhora malvada de cabeça desgrenhada, olhos coruscantes e trejeitos de louca.

«Viajámos muito os dois. Todos os anos íamos a Paris e Madrid. Conheço a Europa inteira, excepto a Grécia… Quando a mãe morreu fiquei desasado». (Blogue “O Homem que diz Adeus” Março 2005).

Então o senhor João Serra deve ter achado que vir para a rua podia ajudá-lo a respirar, que já sufocava lá dentro... E que comunicar com os outros, ainda que só através dum simples adeus de principezinho – que nem ensaiou e lhe saíu com naturalidade, naquela primeira vez que, a medo, experimentou – era uma forma de enganar a solidão, ainda que por breves instantes…

Dizer adeus a si próprio em frente dos outros era uma bonita forma de antecipar teatralmente, com um cenário de rua atravessada por automóveis com pessoas em fundo, o seu próprio fim. A preocupação da estética sempre presente; bastava olhar para a sua maneira de vestir, de falar, de ajeitar a melena…) Antecipar, encenando todas as noites, uma ideia delirante do seu próprio fim como forma de melhor receber o fim quando o fim fosse mesmo a sério… Como se enfim fosse, de uma assentada, actor, produtor e realizador do seu primeiro e último filme. De um filme que não precisasse da palavra “fim” para assinalar o fim porque todo ele seria, já e só, o fim.

«Sempre quis ser actor mas nunca me deixaram…». (Blogue “O Homem que diz Adeus” de Março 2005).

E ao desfiar as suas elucubrações por entre as lúgubres paredes de sua casa, soube finalmente - a par dessa outra dor que o deixou “desasado” - da dor imensa duma vida sem sentido. No baú dos sonhos perdidos, jaz o curso que não tirou, o trabalho que nunca fez, os filhos que não teve e, pior, o grande amor que nunca conheceu.

“Sinto-me só. Incompleto. Como se algo estivesse a falhar.». ( Blogue “O Homem que diz Adeus” de Março 2005).

Era dor a mais. Não aguentou. Decidiu mergulhar na rua.

Abraçou uma ocupação certa que nunca teve, um “part-time no Saldanha”. Ao princípio, parecia ser uma ocupação pouco digna, assim meio a fingir, mas esta foi, estou certo, a coisa mais séria que o senhor João Serra fez em toda a sua longa, imprestável e inconsequente vida. Finalmente saía do útero pós-materno e enfrentava o mundo – qual D. Quixote - à sua maneira, num gesto tão patético e tão lúcido quanto belo.

Mergulhou na rua como quem mergulha no vinho, para uma bebedeira. Um breve alheamento da dor “desasante” da solidão. Voar baixinho, viver à tira, à justa, à pele, mesmo que com a ajuda dum analgésico, é, apesar de tudo, voar…

E recomeçou a voar, ainda que muito baixinho, ali mesmo junto ao Saldanha. Os seus voos eram rasantes curtos e incertos. Mas voava. Nos primeiros tempos voava meia hora e ficava muito cansado. Com a continuação do exercício, a asa “desasada” pela dor que o “desasara” ganhou tónus muscular. Começou a equilibrar-se melhor e a aguentar mais tempo a voar.

Estou a vê-lo num vídeo no “You Tube”, em 2005, a dar uma entrevista na rua em pleno desempenho das suas funções; um exercício de “adeuses” de tocante beleza crepuscular (no sentido do seu contributo estético para uma forma de encarar a morte) com um “placard” em fundo cujo relógio marca 01,43 h. de uma qualquer madrugada.

“Chega por volta das onze, meia-noite. Começa pela zona do Monumental, vai descendo a rua até ao Marquês de Pombal e depois sobe, parando sempre em pontos estratégicos. Nunca falha.”, diz Arménio chefe de mesa da Marisqueira Maracanã, que já lhe serviu alguns jantares.». ( Blogue O Homem que diz Adeus - Março 2005).

Nesse vídeo quando o repórter lhe pergunta o que é que ele achava mal em Portugal ele responde que os portugueses cá não produzem nada mas que quando vão para o Luxemburgo, para a França ou para a Suiça são óptimos.

Ele também foi para o estrangeiro, não para trabalhar mas apenas para aprender inglês.

«Foram três anos fantásticos. Tinha um grupo de amigos fabuloso, com quem viajei imenso. Teria lá ficado se não fosse tão agarrado à família…O meu pai não sabia o que havia de fazer comigo. Decidiu mandar-me para Londres. Achava importante que eu falasse inglês fluentemente e eu fui. Ainda tenho saudades desse tempo. Foi uma festa do princípio ao fim. Inglês aprendi, mas não na escola como ele queria. Depois um dia decidiu que já chegava, cortou-me o dinheiro e mandou-me regressar». (Blogue “O Homem que diz Adeus”. - Março 2005.

Na minha pesquisa tropecei numa citação muito interessante que comparava o Senhor do Adeus com o mito urbano do “naked cowboy”: um homem que sai muitas vezes a dar uma volta na Times Square apenas com um chapéu de “cowboy”, as respectivas botas e umas cuecas. Não sei se o anti-herói nova iorquino irá ter direito a estátua. Por cá, há quem queira erigir no Saldanha uma estátua ao “homem do adeus”. Já corre, célere, nas redes sociais, uma colecta…

Mas, falta ainda desvendar o maior drama do senhor João Serra.

É uma espécie de “matrioska” só que com duas bonecas; um drama dentro de outro drama, qual deles o maior. A boneca maior é a ressaca. A boneca mais pequena é a bebedeira. Mas tinha dias em que a posição das bonecas se invertia e em que a boneca maior era a bebedeira e a boneca mais pequena era a ressaca, um dramático paradoxo…

A bebedeira, seja de que espécie for, nunca é eterna, desemboca sempre numa ressaca. Mas no caso do senhor João Serra a coisa complicava-se porque todos os dias a ressaca desembocava, inexoravelmente, numa nova bebedeira.

Isto foi o suplício de Sísifo do senhor João Serra. Extremamente penoso, extremamente custoso, nunca acabado. A dor da ressaca do regresso a casa conjugada com a dor do “torna-viagem” à bebedeira constituíram, para mim, a encenação mais completa e dramática da última parte da sua vida, porque também travestida de tanta coisa (das luzes da ribalta, do apagar das luzes, do “glamour”, da prostração, dos acordes dum fado, dum estremecer de silêncio...).

E garantiram, apesar de tudo, ao senhor João Serra durante alguns (poucos) anos uma existência q.b. mas, ao mesmo tempo, foram também os aceleradores da sua morte anunciada num adeus no Saldanha.

Depois…

O pressentir ficar só, o pressentir o fim, o pressentir só, o ficar só, o fim…



Parte II

O contributo do senhor João Serra para um outro Portugal

Há uma inegável similitude (ressalvadas as proporções, claro está) entre o percurso deste anti-herói com o percurso do próprio país. Este tipo de anti-herói nacional, para o país em que nos tornámos até não está nada mal. Empobrecido, deprimido, decadente, belo, dramático e a voar tão baixinho que estremecemos a cada batimento da asa “desasada” pois tememos sempre que vai “desasar” de vez…

Como o senhor João Serra também Portugal, em tempos idos viveu num grande palacete da Tomás Ribeiro, cobiçado por todos, até, dizem, pelo senhor Gulbenkian. Como o senhor João Serra, também Portugal andou tempo de mais num grande pagode.

“Que saudades tenho desse tempo…A casa estava sempre cheia de família e amigos…».(Blogue “O Homem que diz Adeus”. - Março 2005).

Mas, para já, também o “papá” cortou a mesada a Portugal…

Era bom que Portugal, de uma vez por todas, enfrentasse com a coragem do senhor João Serra – e, se possível, com a sua elegância – todos os seus fantasmas e saísse deste faz-de-conta interminável, saísse do pseudo útero em que se encasulou há tempo de mais e que cortasse, com uma tesourinha empunhada pela sua própria mão, o nauseabundo e sufocante cordão umbilical em que se enleou, nem que fosse para arranjar um qualquer “part-time” ali para o Saldanha…

O autor não aderiu ao “Novo Acordo Ortográfico”.

Autor: José Jorge Vinha

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