segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

REAL... IRREAL... SURREAL... (7)


The Ladder of Escape, Joan Miró, 1940
Gouache, aguarela e tinta sobre papel, 40.0 x 47.6 cm


OS DESENHOS DO FILIPE
Filipe fazia uns desenhos que apenas mostrava ao drogado.

O drogado era-o apenas de nome. Numa aldeia pequena, um homem de cabelo comprido e olhar brilhante nunca seria de confiança. Ele tinha aparecido por ali e, como tinha aquele aspeto, passou a ser o drogado. Mais tarde..., quando se percebeu que o homem nem sequer cigarros fumava, só bebia água e era vegetariano, já era tarde. Ficou na mesma o drogado. O que, convenhamos, não o perturbava minimamente. Ao fim e ao cabo quem define um homem é ele próprio. Os outros…

O Filipe tinha uma espécie de ritual, que cumpria de forma meticulosa: acordava por volta das 6 horas, colocava o peluche na cabeceira do lado direito, ajeitava-o, acariciava com ternura o cabelo da sua companheira, sentava-se na cadeira verde e desenhava, recorrendo apenas a uma caneta preta. Acabava o desenho impreterivelmente pelas 6. 30h. e, sem fazer qualquer tipo de apreciação da obra realizada, colocava o desenho numa capa preta e grossa.

Seguiam-se, a partir dali, as coisas habituais. O seu dia era normal e, pela noite, voltava a casa. Pelo caminho, encontrava o drogado e mostrava-lhe o desenho. Não falavam. Acontecia apenas um ligeiro gesto.

No dia seguinte, por volta das 6 horas, tudo se repetia novamente.

Filipe trabalhava numa seguradora, tinha um emprego estável, uma mulher que amava de forma já tranquila e dois filhos adoráveis e bons alunos. Um rapaz com treze anos e uma menina com nove. Era assim a sua existência. Tranquila e feliz. Nada de extraordinário.

Com excepção da primeira meia hora do seu dia.
Era uma mulher triste. Triste por tudo. Triste por nada. Devido a esta condição, privava-se da maior parte das coisas por medo de se deparar com algo que lhe soltasse o choro. Era muito raro sair de casa, mas, caso tivesse mesmo de o fazer, Carolina escolhia muito bem os caminhos e as horas e corria silenciosamente o tempo de cá para lá e logo de lá para cá, sem paragens, sem conversas.

Evitava as esquinas e procurava andar sempre a direito.

Pelas dezasseis horas, um homem louco, de pernas para o ar, lia um jornal.

Uma criança fugia pela janela.

Era um homem bonito, mas perdido. Ia à missa roubar carteiras e passava nas lojas para comprar raspadinhas. Se lhe saísse dinheiro, deitava-o fora. No outro dia voltava à missa.

O padre dizia mal dele.

Cristo dava a outra face.

Filipe encontrou o drogado por volta das cinco da tarde e mostrou-lhe o desenho do dia. No desenho, uma parede branca com uma janela azul. Aberta. Um pé encostado à parede, suponho que de um homem com umas meias de mulher. Um jornal rasgado.

Uma árvore, uma criança a chorar.

O drogado olhou o desenho com atenção, sorriu, acenou ligeiramente em sinal de concordância e Filipe seguiu o seu caminho até casa. A sua mulher esperava-o. Os miúdos tinham ido para a casa dos avós.

Nessa noite a mulher foi especialmente carinhosa e, na manhã seguinte, Filipe acordou abraçado a ela como no primeiro dia.

Às 6 horas.

Colocou o peluche na cabeceira do lado direito, ajeitou-o, acariciou com ternura o cabelo da sua companheira e sentou-se na cadeira verde.

Pegou na caneta preta e desenhou.

Pelas 6.30h., sem fazer qualquer tipo de apreciação da obra realizada, colocou o desenho numa capa preta e grossa.

Nesse dia, pela tardinha, o drogado olhou o desenho. Mas, desta vez, o ligeiro aceno em sinal de concordância foi substituído por um discreto arrepio. Calado e triste, o drogado rasgou o desenho e este desfez-se em pedaços.

Mais tarde, Carolina, entre o tempo de ir e voltar, encontrou uma pequena parte do desenho. Ainda se conseguia perceber, naquele pedacinho rasgado, uma cara de alguém a sorrir. Pareceu-lhe familiar e ficou curiosa. Um ligeiro rubor, talvez de entusiasmo, coloriu-lhe discretamente a expressão.

Apanhou todos os pedaços do desenho e, apressada e silenciosamente, voltou para casa. Abriu a gaveta, tirou o rolo da fita cola e colou todos os pedaços de papel. Lentamente, o seu próprio rosto foi surgindo dos riscos negros que se organizavam na folha de papel.

Olhou com mais atenção e viu-o no desenho do Filipe.

Sorriu.

Abriu a janela.

Em frente da sua casa era a igreja.

Carolina vestiu o seu vestido vermelho, colocou os sapatos de salto alto e soltou o cabelo.

Um homem saía da igreja com uma carteira na mão. Foi a última que roubou.

Cristo deu-lhe a outra face.

O padre foi transferido de paróquia por bater numa criança.

Filipe deixou de desenhar.

Um dia, sem sobressaltos, voltou a acordar pelas seis horas em ponto e desenhou uma mulher muito bela e um homem de cabelo comprido e olhos brilhantes. O drogado voltou a acenar em jeito de concordância. Sorriu.

Seguiram-se, a partir dali, as coisas habituais. O seu dia foi normal e, pela tardinha, voltou a casa. A sua mulher esperava-o, sorridente.

Era um homem feliz.

Maria Teresa Bondoso
14 de dezembro de 2012

6 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia, Teresa e António!
Teresa, devia ter comentado o seu conto à 0:15, quando o acabei de ler, mas resolvi esperar pela manhã porque é assim que gosto de começar as minhas manhãs de 2ª feira: a 'dizer-lhe' o quanto gosto de a ler! Este seu pequeno conto é tão rico, é tamanha a densidade psicológica das personagens, que merecia umas boas linhas de escrita... em vez disso vou só agradecer-lhe o prazer da leitura e confidenciar-lhe que adorei o Filipe (porque não há pessoas cinzentas, somos todos 'a cores') e, muito particularmente, o 'drogado', não sei bem porquê, talvez pelo facto de ser vegetariano! Quanto prazer lhe deve ter dado escrever este texto - e quanto prazer me deu a sua leitura! Os meus parabéns!
António Tapadinhas, como gostaria que escrevesse um pouquinho sobre o quadro do Miró, daquela forma que só um pintor sabe escrever sobre pintura... deve ser pedir muito, mas aqui fica a sugestão...

A.Tapadinhas disse...

Miró conquistou na pintura um novo espaço que ele povoa com os seus personagens arquétipo: estrelas, pássaros, mulheres...

Todos eles saem dos limites do quadro, expandem-se como o universo e chegam até nós com regras próprias ou, talvez, com uma: a do nosso imaginário...

O prazer, o gozo, a euforia que Miró sentiu (eu sei) a construir esta escada de fuga para o futuro, na companhia do que mais gosta! Pena que nós, pobres mortais, não o possamos acompanhar... Mas podemos tentar!

Miró não sabia, mas estava a pintar as palavras de Teresa Bondoso.

Ou será o contrário?

António Tapadinhas

Unknown disse...

Talvez quem "pinte as palavras" ou "escreva as pinturas" seja quem as vê ou lê. Por isso, se calhar apenas por isso, ainda exista quem pinte ou escreva. Ou será ao contrário?

Abraços.
Teresa Bondoso

Anónimo disse...

Obrigada ao António Tapadinhas pela gentileza com que acedeu a dar uma pequena 'lição' sobre Miró.

MJC disse...

De volta ao reino maravilhoso.

Teresa, não vou repetir adjectivos.
Não quero parecer monótono e repetitivo mas, mais uma vez, acabei a leitura do seu texto a sorrir.
Porque será?

Um abraço.

Manuel João Croca

MJC disse...

Desta vez não deixo passar:
Excelente o trabalho de "emolduramento" do António.

Para além do mais, adoro Miró.
Um abraço.

Manuel João