segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

REAL... IRREAL... SURREAL... (6)


Golconde, René Magritte, 1953
Óleo sobre Tela, 81x100cm
O MAIS NOVO DOS ANTUNES

O homem dizia que ele, o rapaz, nunca viria a ser gente.

A mãe do rapaz era pobre…

O rapaz até parecia esperto, mas era dos Antunes.

E ser dos Antunes trazia-lhe uma espécie de destino… o de nunca vir a ser gente.

Dizem que os Antunes eram todos destrambelhados. Eu não sei, nunca os cheguei a conhecer. Só conheci o rapaz…

A mãe do rapaz fugiu com o mudo numa quarta-feira e deixou as filhas mais velhas – duas miúdas gémeas – fechadas dentro de uma mala.

As miúdas iam morrendo. O que valeu foi o carteiro que estranhou o cão que estava estranho, chegou-se à porta, ouviu os gritos das gémeas e chamou a polícia.

Os tios do rapaz diz que eram todos muito magrinhos, que bebiam muito e ninguém sabia ao certo quantos eram. Pareciam muitos, eram todos iguais e falavam alto.

As miúdas da mala andam sempre as duas, juntas. Andam depressa, parece que vão a fugir.



O rapaz já sabe que nunca virá a ser alguém. Ouviu uma conversa na escola…

Um homem de fato azul, muito bem parecido, dizia que o miúdo até era esperto, mas tinha de ser avaliado, sinalizado, acompanhado, ajudado… era dos Antunes (lembram-se dos Antunes?).

Portanto, o melhor era pedirem a tal avaliação o mais depressa possível, porque num instante se chegava ao fim do ano e depois não havia tempo de preparar o processo… ele percebeu que o homem de fato azul, muito bem parecido, de quem nunca soube o nome e que só viu naquele dia – de longe – falava de uma coisa chamada ensino especial.

O rapaz não sabia bem o que isso era. Ficou com a pulga atrás da orelha e acabou por ouvir a D. Fernanda comentar que, coitadito, o mais novo dos Antunes (lembram-se dos Antunes?) já estava para avaliação e que o homem do fato azul, muito bem parecido, tinha dito que ele, o rapaz mais novo dos Antunes nunca chegaria a lado nenhum, o que é o mesmo que dizer que nunca viria a ser gente.



O homem dizia que ele, o rapaz, nunca viria a ser gente.

A mãe do rapaz era pobre e tinha fugido com um mudo.

E o rapaz era o mais novo dos Antunes.



O rapaz gosta de música.

Mas, pobrezinho, nunca vai aprender a cantar. É enteado do mudo.

O desgraçado do miúdo é meio destrambelhado… põe-se a olhar para um livro como se soubesse ler. E fica horas naquilo.

Na visita de estudo ao aeroporto, não foi. Não valia a pena ir, disse-lhe a professora, nunca havia de andar de avião.

Dá-me uma pena, os Antunes…



O rapaz cresceu. Foi à tropa. Fez-se um homem. Aprendeu a ler, sozinho.

Estudou.

É piloto de avião e farta-se de viajar.

Foi por pouco… mas chegou a ser alguém.

Nem parece da família dos Antunes.



O homem do fato azul morreu. Mas ia tão bem parecido…



Maria Teresa Bondoso

9 de novembro de 2012

5 comentários:

Luís F. de A. Gomes disse...

Boa! Teresa.

Pena são os Antunes que por esse mundo ficam de fora e pior que por nem mesmo terem essa oportunidade de serem desprezados, são estes que aqueles que lhes deveriam abrir as portas, semear –lhes as asas, rejeitam, tantas e tantas vezes por preconceitos mesquinhos e tão estúpidos como nesta história pungente.

E é justamente tamanha pungência que deixa a nu o quão elementar é perceber o princípio de justiça que está contido na generalização da(s) possibilidade(s) de aprender. Será que Einstein não teve algures um simples professor primário?
Quanta energia e genialidade, quantos ganhos para a Humanidade se perdem na miséria que desperdiça todos os Antunes que ficam de fora por esse mundo?

Palavras necessárias, texto precioso – contributo para a civilização a construir que tomará por barbaridade o mundo que a ganância, neste nosso tempo, está a tentar construir, precisamente sobre os ombros esmagados de todos os Antunes do nosso descontentamento.

Força!
Luís

Anónimo disse...

Gosto das 2ªs feiras - eu sei, parece irreal, mesmo surreal, dirão alguns, mas é real - e gosto também porque é dia da Teresa e do António no EG e já sei que vou gostar!
De uma forma que não sei bem explicar, os textos da Teresa trazem-me sempre sentimentos ou memórias que, depois, me apetece partilhar. E hoje não foi excepção.

O Mais Novo Dos Antunes fez-me lembrar o António. O António a quem eu, carinhosamente, gosto de chamar o 'meu' Tony, rapaz muito calado e para quem também já se pede uma sinalização e uma avaliação psicológica - o que já teria acontecido, não fosse o psicólogo de serviço andar tão atarefado com casos mais urgentes do que o do 'meu' Tony... Mas suponho que o 'meu' Tony é tão calado só porque não tem quase nada para dizer. Ainda na semana passada, quando o fui salvar do Petru que o ameaçou com um 'Vou-te partir os dentes!' o 'meu' Tony disse-me para não me preocupar porque ele não tem medo do Petru! E esta frase tranquilizou-me um pouco...
Tal como O Mais Novo Dos Antunes, o 'meu' Tony não tem mãe, ou melhor, tem mas não se sabe dela - diz-se que é prostituta lá para os lados de Portimão! Do pai também se diz que está preso, não se sabe bem onde nem porquê. E só no início do ano passado o ´meu' Tony descobriu que a avó que o criou afinal não é mãe mas 'só' avó... se calhar por isso é tão calado, não sei dizer...
Não sei se algum dia o 'meu' Tony chegará a ser piloto! Por enquanto só desejo que chegue a ser Homem! O resto, logo se verá...

Desculpe-me esta partilha, Teresa, mas tenho a sensação de que iria gostar do 'meu' Tony, tanto quanto eu! E parabéns por mais este texto que, também mais uma vez, vem acompanhado por um quadro tão interessante!

Unknown disse...

Pois é, Luís, pelos Antunes que se perdem por aí, todos nós ficamos a perder. E tem sido tão difícil compreendermos quem sai da "forma" que inventámos... é uma pena.

O Tony também já é meu. Foi partilhado. Quem bom! Sendo ele "nosso" há-de certamente vir a ser um homem.

Fabulosa, a imagem de René Magritte. Obrigada.
Teresa

MJC disse...

O texto da Teresa, mais uma vez, é maravilhoso.
No conteúdo e no estilo.
A Teresa pertence ao grupo de pessoas que criam coisas maravilhosas, maravilhando-nos a todos, e que nos impelem no sentido de tentarmos ser melhores.
Parabéns e ... obrigado por isso que não é nada pouco.
Diria mesmo que é muito. A-T-I-T-U-D-E, pois bem.
Se eu fosse realizador (de cinema), e depois de autorização da Teresa, tentaria fazer uma sequência de sketches, a preto e branco que alguém disse ter as cores todas e sem som, por não ser necessário.
Quase que aposto que todos os espectadores ganhariam asas. Não como as do avião do Antunes que precisa de combustível para se elevar, antes doutras, as que nascem da alma e permitem uma elevação provavelmente muito maior.
Permita-me Teresa que lhe deixe o meu abraço.

Manuel João Croca

Unknown disse...

As pessoas que nos cercam é que nos compõem. E o que eu escrevo é o resultado de todos os que encontro ou conheço. Nada é genuinamente meu. Daí que, em mim, fiquem as palavras que me dizem ou escrevem, como é o caso.
Pelo estímulo de si que, em mim, compõe o que escrevo... muito obrigada, Manuel João.
Teresa