Da mesma forma que há aquelas ocasiões em que mais valia estarmos calados, há outras em que, apesar de termos falado com acerto, muito gostaríamos de não ter razão. Foi o que se passou em torno da euforia que se seguiu à vitória dos Aliados na guerra e que toda a gente viu como a antecâmara da queda ou, pelo menos, da abertura deste regime repressor que nos sufoca e, mesmo com todas as melhorias que, de facto, introduziu no país, mantém a maioria dos portugueses em níveis de pobreza inaceitáveis e em precárias condições de vida e ainda de futuro incerto. Recordo-me das conversas que então iam no sentido da esperança e de eu ter sido a única pessoa que nunca deixou de colocar reticências a todo esse optimismo o que não estou certa de ter feito por via de uma lúcida análise das circunstâncias, antes decorrendo do pessimismo natural perante as possibilidades de mudança. Infelizmente tinha razão e ao contrário de evoluir no sentido da democratização e de uma maior justiça social, o salazarismo não só se fechou um pouco mais sobre si, como teve o descaramento de aumentar a repressão política e de tal maneira que deixou a oposição praticamente sem qualquer margem de manobra. As eleições presidenciais foram uma autêntica farsa cujo desenlace se resumiu à possibilidade que a polícia aí viu para melhor identificar os mais activos entre aqueles que se lhe opõem e assim poder mais facilmente colocá-los atrás das grades e a verdade é que, de então para cá, os homens da situação parecem cada vez mais confiantes e, ao contrário do que seria de esperar de acordo com os sinais que as alterações externas pareciam dar, tomam-se, em definitivo, dos ares de quem, no lugar, está de pedra e cal. Na razão inversa, as correntes oposicionistas que se digladiaram em torno da candidatura do General Norton de Matos, limitam-se ou tudo indica que estão limitadas, a acções de tertúlia que se podem servir para que certos egos apresentem algo de uma chama de vontade e préstimo, não causam nem são capazes de causar a menor beliscadura na fortaleza deste Estado Novo que, a meu ver, mais não está que condenado a vir a cheirar a bafio se é que tal não é desde já verificável. Para tanto muito contribui a lógica das alianças internacionais que, na sequência da rivalidade e da confrontação que entretanto estalou entre os Estados Unidos da América e a União Soviética do recém-falecido Estaline, veio a recuperar o actual poder com a integração de Portugal no tratado militar de defesa dos países do ocidente europeu. Apesar da derrota do nazismo e do fascismo, Salazar e Franco são agora vistos pelos americanos como fortes e sólidas barreiras à progressão do perigo vermelho que já se estendeu a todo o Leste da Europa e se instalou na China que é só o país mais populoso do mundo. Seja como for, o que entre nós se observa é que ninguém tem conseguido levantar cabelo e até se ouve dizer que os comunistas, pelos revezes que sofreram, aparentam ter a sua organização completamente desmantelada. Por sua vez, o ditador de Santa Comba voltou a dar provas de ser um político astuto e matreiro que novamente soube mexer os cordelinhos e proceder às mudanças necessárias para que tudo permanecesse na mesma e ele continuasse sentado na cadeira do poder de que manifestamente tanto gosta. Foi isso que conseguiu com um escrutínio eleitoral cujo propósito não foi além de tapar as bocas ao mundo e a alteração que introduziu no nome da polícia política que, de repente, se viu no papel elevada à condição de polícia internacional e com isso perdeu, para o exterior, a aura de uma corporação meramente repressora para ganhar o estatuto mais respeitável de algo no domínio dos serviços secretos. Foi o que deu a transformação de uma letra da sigla, o V de vigilância para o I de internacional que deu origem à PIDE, como é vulgarmente chamada no jargão de todos aqueles que lhe temem o longo braço e punho de ferro e que tanto nos incomoda sem que outras razões hajam para lá do facto de vivermos como vivemos e de não só tratarmos os trabalhadores com todo o respeito que, no fundo, nos merecem o que se traduz quer nos salários que lhes pagamos e que lhes possibilitam uma vida decente, quer nas condições que lhes proporcionamos em termos de saúde, em que a Viviana tem posto em prática uma medicina preventiva e conseguiu pôr de pé um serviço de cuidados médicos que a todos assiste gratuitamente, mas igualmente ao nível da cultura, tanto pelos cursos de instrução para adultos que temos proporcionado na nossa escola, como pelas realizações culturais e recreativas que têm decorrido no centro cultural que construímos à entrada do povoado e onde, da música ao teatro, passando pela biblioteca e os jogos de convívio, esta gente encontra ao dispor os meios que individualmente jamais conseguiria reunir para mais e melhor se instruírem e depois pelo que propiciamos aos filhos de que o mais emblemático exemplo é a possibilidade de irem à escola com todos os materiais dados por nós. Bem, ele já houve uma ou outra situação em que o senhor Abel teve que recorrer a alguns de nós para dar guarida a foragidos por motivos políticos e também é verdade que, o próprio o confessou, há por aí colectas que se destinam a recolher fundos para as famílias dos presos políticos. Se a primeira daquelas ocorrências deve continuar a permanecer no segredo daqueles que as interpretaram, caso contrário não tenho dúvidas que os envolvidos já teriam sido incomodados, pouco me admirará que a outra seja do conhecimento daqueles esbirros que, pese embora a aparente deferência com que nos tratam por senhores doutores e engenheiros, muito prazer sentiriam em nos chegar a roupa ao pêlo. No entanto, tenho para mim que o que os traz tão preocupados connosco tem essencialmente a ver com a nossa atitude progressista de garantirmos condições de igualdade de oportunidades aos filhos dos mais pobres o que, para eles, se trata de mera subversão no que, em minha opinião, é o mais firme indício de que os homens da situação se sentem donos e senhores desta terra. Mas o mundo mudou e desta vez estou de acordo com os amigos que vêem na independência da Índia, mesmo com toda a agitação que a envolveu, o primeiro prenúncio do fim dos grandes impérios coloniais. E não é só a esse nível político que a mudança é visível pois, embora lentamente, lá se vai recuperando das maleitas da guerra no que a Europa Ocidental parece estar na dianteira. O que para nós tem tido consequências positivas. Depois de um período que as dificuldades pareceram quase que inultrapassáveis e em que as nossas produções pareciam condenadas a manterem os níveis da procura interna do país que não deu mostras de ultrapassar os seus parcos limites, os últimos anos têm sido de crescimento e com isso temos conseguido aumentar as nossas exportações de azeite e cerais, especialmente o arroz de que já temos uma fábrica de descasque e empacotamento. Ora isso repercute-se na qualidade da nossa vida quotidiana e agora praticamente todos possuem modernos fogões a gás nas suas cozinhas e, com os novos esquentadores, as águas do banho deixaram de ter que ser aquecidas previamente nas panelas. Parece que não, mas são horas de vida que se ganham para o descanso e momentos exactamente como este.
Mas a comunidade teve uma outra baixa de que ainda não falei. O Félix e a Éster abandonaram-nos para irem viver para o novo estado de Israel que querem contribuir para erguer e solidificar. Disseram que a experiência que aqui tiveram pode muito bem habilitá-los a melhor ajudarem nesse processo. Quanto a mim, acho muito bonito que assim pensem, fiquei muito orgulhosa quando os ouvi dizê-lo. E também foi bonita a atitude que tiveram na despedida, quando quiseram levar a chave de casa com eles, não porque estejam a pensar em voltar mas simplesmente porque não se querem esquecer de onde partiram e a onde igualmente pertencem. Tenho pena de não termos notícias deles desde então e só posso esperar que ambos estejam bem.
A Lua, com um halo arroxeado na orla das nuvens que de vez em quando a encobrem, está tão intrigantemente bela.
Mas a comunidade teve uma outra baixa de que ainda não falei. O Félix e a Éster abandonaram-nos para irem viver para o novo estado de Israel que querem contribuir para erguer e solidificar. Disseram que a experiência que aqui tiveram pode muito bem habilitá-los a melhor ajudarem nesse processo. Quanto a mim, acho muito bonito que assim pensem, fiquei muito orgulhosa quando os ouvi dizê-lo. E também foi bonita a atitude que tiveram na despedida, quando quiseram levar a chave de casa com eles, não porque estejam a pensar em voltar mas simplesmente porque não se querem esquecer de onde partiram e a onde igualmente pertencem. Tenho pena de não termos notícias deles desde então e só posso esperar que ambos estejam bem.
A Lua, com um halo arroxeado na orla das nuvens que de vez em quando a encobrem, está tão intrigantemente bela.
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