segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

REAL... IRREAL... SURREAL... (9)



Campo de Trigo com Corvos, Vincent van Gogh, 1980

Óleo sobre Tela, 50,5x103cm


HOMENS-PÁSSARO

A Dona Pureza, ao que tudo indicava, devia ter tido um AVC.

Eu mal a ouvia mas consegui perceber que era ela.

Naquela altura, a Dona Pureza era uma pessoa qualquer.

Era uma mulher e tinha uma cara de que agora me lembro, mas que só mais tarde conheci no meu quarto quando ambas já tínhamos saído dos cuidados intensivos.

A Dona Pureza tinha tido um AVC e não dizia coisa com coisa.


Ninguém a ia visitar. E era feia.


Como ninguém a ia visitar e era feia, a Dona Pureza na altura não tinha nome. Nem doença definida.

Mais tarde, quando já tínhamos saído dos cuidados intensivos e estávamos as duas no mesmo quarto, veio um filho visitá-la. Então, perdeu ele o nome. Passou a ser o feio e ela passou a chamar-se Dona Pureza.

Ele era um homem baixo, gordo, feio e bruto. Mas calado.

Na verdade, ninguém o conhecia. Ele ia lá muito pouco. Ao que tudo indicava, andava sempre por fora.

A Dona Pureza deixou então de inspirar cuidados de maior e, apesar de ser feia e de não ter ainda doença definida, foi transferida para o quarto 36, cama 2.

Eu fiquei no mesmo quarto, cama 3.

Presumo que também fosse feia e sem doença definida.


Eu de mim não sei falar.

Mas lembro-me de me olhar ao espelho depois de uns dias naquele quarto de hospital…


- Ó menina, eram tantos homens-pássaro. A menina não os viu? Entraram pela janela…

A Dona Pureza tinha tido um AVC e não dizia coisa com coisa.

Até que uma noite eu também não consegui dormir.

E na janela do quarto 36 as luzes dos carros que passavam desenharam homens-pássaro. E se a minha doença por definir não fosse bastante diferente da doença por definir da Dona Pureza, nessa noite eles tinham entrado pela janela.


- Ó menina, quero o penico. Estou tão aflitinha…

- Ó mulher, para que quer o penico se eu já lhe pus uma fralda?

A Dona Pureza tinha tido um AVC e não dizia coisa com coisa.

Até que um dia eu olhei para a cama dela e reparei que na cama dela faltava a campainha.

A Dona Pureza era feia. E naquele hospital os feios não tinham voz e usavam fralda.


Fez-se silêncio. Não era um silêncio mau. Era só o silêncio de vir o médico.

- Dona Pureza, já descobrimos o que a senhora tem. A senhora apanhou uns bicharocos e agora vai ter de fazer um tratamento, mas vai ficar boa.

- Uns bichos? Eu apanhei uns bichos?

- Ó menina, a médica diz que eu apanhei uns bichos… mas o meu marido já morreu há mais de vinte anos e eu nunca tive outro homem.

A Dona Pureza não tinha tido um AVC e sabia bem o que dizia.

Não podia ter bichos. Isso era coisa que se apanhava dos homens.

No dia seguinte, ainda madrugada, a Dona Pureza sentou-se num banco à porta do quarto 36. Esperava o seu filho e, ao que tudo indicava, não fazia tenções de voltar ao hospital. Mais tarde, o rapaz veio buscá-la. Chamava-se António e era escritor.


Hoje lembrei-me disto porque me disseram que o António tinha ganho um prémio. Não foi um prémio literário. Ao que tudo indica, o António salvou uma médica quando esta se ia atirando para baixo de um combóio, enquanto procurava apanhar uns homens-pássaro que por ali passavam.


A médica não morreu, mas parece que não diz coisa com coisa.

Ao que tudo indica, terá tido um AVC.


Maria Teresa Bondoso

8 comentários:

Anónimo disse...

Bom Dia, Teresa e António!

Gostei muito da Dona Pureza - apesar de ser feia e sem doença definida é uma mulher de sorte: tem um filho escritor e vê Homens-Pássaro! O que será que lhe aconteceu a seguir ao filho ter recebido um prémio? Será que se tornou bonita?

Há poucos dias falava com uma filha a propósito de livros e personagens (temos uma espécie de clube de leitura familiar...) e ela dizia-me que às vezes tem saudades de certas personagens e dá por ela a pensar o que estarão a fazer naquele momento, como se se prolongassem para além das págimas de um livro... e se calhar prolongam-se mesmo... Se voltou ao hospital, de certeza que a Dona Pureza já tem direito a uma campainha, afinal o filho ganhou um prémio...

E porque hoje é o último dia do ano, para além de agradecer à Teresa e ao António o enorme prazer dos nossos encontros à 2ªf de manhã, desejo-vos um Bom Ano Novo! Com muitas histórias e muita cor!
Um enorme abraço a ambos!

luis santos disse...


Foi quando a Dona Pureza aprendeu a linguagem desses tipos homens, não foi?

luis santos disse...


...E lá me esquecia: BOM ANO!

MJC disse...

A Teresa é, também, uma criadora de personagens.
Em todos os seus textos vão desfilando e, como nunca se revelam completamente, ficam connosco durante um período de tempo para ver se as conseguimos descobrir e compreender melhor. Nesse esforço, acabamos por procurar dar continuidade às suas histórias participando no trabalho de contar. Isso, só está ao alcance dos escritores "maiores".
Parabéns.

Manuel João Croca

MJC disse...

A Teresa é, também, uma criadora de personagens.
Em todos os seus textos vão desfilando e, como nunca se revelam completamente, ficam connosco durante um período de tempo para ver se as conseguimos descobrir e compreender melhor. Nesse esforço, acabamos por procurar dar continuidade às suas histórias participando no trabalho de contar. Isso, só está ao alcance dos escritores "maiores".
Parabéns.

Manuel João Croca

MJC disse...

Mais uma vez também, isto já é um lugar comum, parabéns ao António pelo "pórtico" do texto.

Abraço.

Manuel João Croca

Unknown disse...

É com um enorme prazer que vejo as personagens que em mim vivem e nascem a viverem também nos amigos que aqui nos visitam. Começando logo pelo António que, de forma notável, sempre lhes dá por companhia belas imagens... A todos um Bom Ano e parabéns ao EG pela imagem renovada.

A.Tapadinhas disse...

Está a dar-me muito prazer, para não dizer, gozo, escolher a obra-prima que possibilita mais uma leitura das estórias da amiga Teresa.

Por causa dessa busca, tenho revisitado alguns pintores sem idade...

...cujas obras continuam actuais.

Como as figuras/personagens que aqui ganham vida...

António