terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



E esta nossa comunidade lá vai cumprindo o movimento natural da população pelo qual poderá aspirar a perdurar no tempo e neste espaço que paulatinamente temos transformado num lugar onde sabe bem viver. Desta feita coube o presente ao senhor Abel e à dona Noémia que, desde ontem, são agora avos de uma linda menina a quem atribuíram o nome de Maria Vitória por sugestão do avô materno que defende a importância de tal escolha, por, em sua opinião, ser esse o primeiro incentivo para que o novo ser venha um dia a seguir os trilhos dentro de certos quadros de valores. Bebé robusto e escorreito que tudo indica estar bem de saúde, o parto é que foi obra que outra coisa não poderia ter acontecido para parir um corpinho com um pouco mais de quatro quilos e cinquenta e um centímetros de cumprimento. Mas a mãe está bem e dá mostras de ter muito leite para o que, na sabedoria ancestral da avó, muito concorreram as grossas postas de bacalhau que ao longo destes últimos meses, amiúde, constituíram o principal prato da dieta alimentar da grávida e o pai, esse, parece um pavão namoradeiro que não se cansa de recitar os dados antropométricos da recém-nascida e, enquanto durou a visita que lhes fizemos esta tarde, à medida que ia dando corda à sociabilidade do anfitrião, não parou de apaparicar a parturiente com as antecipações de lhe evitar o mais leve dos esforços e de lhe beijar a testa como que a marcar cada vez que passava por ela. Ali há felicidade e esperança e sobretudo uma vontade indomável para tudo levar a bom porto e ao novo ser proporcionar um futuro condigno. Parabéns pois aos pais, antes de todos, mas igualmente aos avós que, especialmente do lado materno, não conseguem ocultar a enorme alegria que estão a sentir. Ainda que aqui estejamos há pouco mais de uma dúzia de anos, é a terceira geração que começa e eu só posso expressar o desejo para que aqui venha a viver e, já agora, a ser feliz como, pelo menos, eu tenho sido. O certo é que se aqui pudemos ter chegado mais com base numa certa amálgama de sonhos e até fantasias e os desejos de construirmos um modo de ganharmos a vida, o que o decorrer das estações tem revelado é que temos sido capazes de realizar os objectivos que vamos estabelecendo e por via disso acabámos por criar raízes num mundo que vamos erguendo à medida das nossas necessidades e para o qual até estamos a educar os nossos filhos. Quanto a isto, agora sou eu que já não tenho grandes dúvidas de que esse futuro se cumpra um dia e para falar com toda a sinceridade, vejo com bons olhos a perspectiva de aqui ficar até ao resto dos meus dias. E para que assim seja muito tem contribuído a família do senhor Abel, o genro incluído. Hoje recordo com carinho o modo simpático e generoso como nos primeiros tempos se preocupava com o conforto dos mais novos que, a seus olhos, na quase totalidade dos casos eram jovens pouco habituados a sacrifícios e que, por isso, no que estava ao seu alcance, para quem importava minorar as dificuldades para que dessa forma se evitasse a perda da força para o trabalho que havia a fazer e que eles, por mais experientes, sabiam ser farto e até doloroso. A dona Noémia então era solícita a oferecer-se para as tarefas mais duras da vida doméstica no período em que vivemos colectivamente no casarão e parece que a estou a ver e ao marido, na primeira das nossas noites, dizerem estarem eles mais ambientados com a falta de condições pelo que de modo algum se importariam de serem eles a montarem o estamine no salão, onde, sob a venda de panos e lençóis, estenderam as camas de campanha para que os outros, pelo menos, pudessem dispor da intimidade de quartos ainda que improvisados. Depois seguiram-se os anos de labor intenso em que os membros daquela família provaram ser autênticos heróis e, todos eles, sempre alegres e bem dispostos, amigos de ajudar e prontos a ouvir, no que foram o melhor exemplo de coragem e abnegação para todos. Ora eu é que não me enganei quando um dia aqui escrevi que o então rapazinho que nos prestava alguns serviços dava mostras de andar a arrastar a asa à filha deles, da mesma maneira que acertei quanto à sua esperteza e dinamismo. A dona Noémia gosta muito de falar comigo e de me abrir a alma e apesar de sempre deixar expressar as ressalvas do pelo menos até ao momento estar tudo bem, nunca se inibiu de se mostrar satisfeita com o homem que a filha arranjou, por ser meigo com ela e amigo de com ela partilhar vontades e inquietações e tão bem ter aceite participar em tudo o que há para fazer em casa de que a fêmea não é escrava. Achei graça quando ela um dia me confessou, num repente, ser ele muito asseado, mas depois compreendi a preocupação quando ela me explicou as batalhas que teve que travar para levar o senhor Abel a entender esses bons preceitos. Que o rapaz é um fura-vidas já todos tínhamos dado conta. Aquilo já devia ter a ideia com ele mas a verdade é que pouco tempo depois de casar veio junto de todos para pedir autorização para abrir um estabelecimento de café num edifício que poderia construir à entrada do largo que dá acesso ao casario e, como ninguém viu mal algum nisso, antes lhe deram razão quanto à pertinência de um tal ponto de convívio, assim se lançou de alma e coração ao trabalho e com tão grande afã que em meia dúzia de meses ergueu o primeiro andar que lá está, enquadrando por esse lado a praça e a partir do qual dentro em breve iniciaremos a construção de uma vintena de casas, semelhantes àquelas em que vivemos, as quais constituirão digamos que o bairro onde poderão viver aqueles que aqui trabalham e, em termos de vínculos legais, não são membros da cooperativa, tal como sucede ao genro do senhor Abel que preferiu assim a sua condição de comerciante. E se ele é industrioso e o melhor seria dizer eles, pois ela, pelo menos até agora que foi mãe, não se dava a aparências de cansaço quando, depois das suas funções na creche, passava pelo café para auxiliar o marido no que fosse preciso e aos fins-de-semana sempre estando disposta a recolher-se à cozinha para que ele tenha o ensejo de apresentar os saborosos petiscos que nos serve, mas também pela visão que vai revelando, como no caso de ter garantido o comércio das botijas de gás que, tendo todos fogões desses e esquentadores em casa, são em quantidade suficiente para lhes facultarem uma boa fonte de receitas. E não é que já disse que uma vez feito o que ele próprio apelidou de bairro operário, é muito bem capaz de acrescentar um anexo nas traseiras onde poderá abrir um restaurante? Não admira pois que tenha sido pela força dos seus braços, com a ajuda do sogro e de um primo que entretanto veio a trabucar para nós que pôs de pé a moradia onde, por cima do estabelecimento onde nos habituámos a tomar um café, depois do jantar, ou a refrescarmo-nos ao fim da tarde, fez a casa de habitação onde agora vivem.
Tenho a certeza que vão saber educar a Maria Vitória a quem proporcionarão as condições para que um dia possa vir a escolher um caminho na vida que é o primeiro degrau para que possa vir a ser feliz e livre, livre e feliz.

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