Da janela do quarto, que dava para a rua,
os sons da noite chegavam como uma alegoria.
Podia até identificar os donos daqueles passos, noctâmbulos que na
escuridão se mostravam tão perceptíveis. Era o fatigado, lento, arrastando os
sapatos. O apressado, com passos rápidos, tirando das pedras de calçamento
antigo um som metálico, alto. Vez por outra, vozes sussurradas, denunciavam a
passagem de um casal. Ela num tic-tac de salto alto, miúdo, rápido, tentando
acompanhar o passo largo e cadenciado do companheiro. Ou então era o descompasso, o vozerio
irreverente de algum cachaceiro que cambaleante atravessava a rua. Inquieta, na
cama, procurava relaxar, descansar, esquecer as tribulações que agitavam meu
espírito.
Fora um dia cansativo, triste, daqueles que
a gente quer logo esquecer. Após atender as pacientes agendadas, prestes a ir
embora para casa, chegou da roça Marta, uma jovem mulher, mãe de uma menina que
há anos trás havia nascido comigo. Pálida, tonta, suando frio, queixava-se de
dores no baixo-ventre e hemorragia. Ali
mesmo no ambulatório fiz o diagnóstico. Estava em choque, era um descolamento
de placenta de feto morto. Internei-a e mediquei-a urgente.
Apesar dos procedimentos de praxe, das
medicações, soros e transfusões sanguíneas, Marta não resistiu. Não sabia que
estava grávida e longe, na fazenda, não valorizou os sintomas que se
apresentavam há dias. Quando resolveu procurar ajuda o processo de coagulação
intravascular disseminado já havia tomado conta do seu organismo. Fiquei
arrasada. Suas queixas e aflição não saiam do meu pensamento. Custei a arranjar
forças para dar a triste notícia à família.
Já era muito tarde quando voltei para
casa. Todos dormiam. Tomei um banho,
bebi um copo de leite e fui para cama, inutilmente. O relógio da matriz deu
meia-noite, uma hora, duas horas,... E eu ali, me virando e revirando, tentando
ignorar as inquietações, ouvindo os barulhos da noite. Eram os transeuntes que
passavam, os gatos que miavam, escandalosos nos telhados como carpideiras
chorando um defunto. Os cães, atentos aos menores barulhos ou movimentos,
latiam insistentes, lembrando que estávamos numa pacata cidade do interior. Era
cerca de 5h da madrugada, quando os galos começaram a cantar, anunciavam o
nascer de um novo dia. O telefone tocou. Atendi, cansada, com a voz pastosa,
corpo moído, a enfermeira da maternidade. Era mais um bebê que estava prestes a
chegar a este louco mundo. Tinha que me apressar, a mãe, multípara na sua
sexta gravidez, era boa “parideira”, se eu não corresse a criança não me
esperaria...
Apressada, troquei de roupa, acordei as
crianças para a escola, e saí de carro para o hospital, que ficava a poucas
quadras de casa. Cheguei a tempo de aparar a Maria Eduarda, que abrindo os
pulmões, num grito vigoroso, deu boas vindas à vida. Era mais um dia, sem noite, que começava, mas
desta vez de alegria.
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 03/01/13
2 comentários:
Fiquei com vontade de conhecer o resto da vida da Maria Eduarda... que nasceu, tal como eu, num dia já sem noite. Muito bonito.
Belissímo texto.
Neste ir e vir se faz a vida, se chega à morte.
O entretanto é o caminho que fazemos, as lições que aprendemos, a aguarela que pintamos.
Gostei muito.
Manuel João Croca
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