terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



“-E agora vejam lá os filmes que vão apresentar.” Foram exactamente estas as palavras do Presidente da Câmara que deve ter feito questão de ser ele, cara a cara e em mão, a entregar-nos a licença que nos permite projectar cinema na sala que, para o efeito, construímos na associação. Pessoalmente, tomei isso como um ultraje que nunca antes experimentara e pela primeira vez senti o fel da revolta contida, por não poder de imediato dizer àquele homenzinho que não só estava a ser rude e mesquinho, como nos estava a tratar tal qual fossemos miúdos de trazer pela mão. Mas o que nós queremos mesmo é gozar a possibilidade de voltarmos a ter a regularidade desse mistério encantador de nos evadirmos a coberto da escuridão de uma sala e, pelas gavinhas das imagens, termos o ensejo de entrarmos por outros mundos dentro, ou nos deixarmos guiar pelas tramas e peripécias de outras vidas, mais não seja por essa humaníssima necessidade de fantasia e onirismo. Só por isso me calei e ocultei o sentimento da humilhação de me ver tratada como uma mera rapariguinha tonta de quem os pais pensam ter que estar constantemente a salvaguardar da eminência de perigos de quem não tem ou não consegue ter consciência. Assim inclinei a cabeça e me fixei no chão, não fosse o olhar incendiar e as roupas do traste pegarem fogo que certamente alertaria a polícia e de que resultaria tirarem-nos este pão para a alma, desfeita essa que seria muito maior do que a de nos ofuscarem a sensação de prazer por sabermos poder vir a usufruir a magia da sétima arte que foi precisamente o que aquele parvalhão fez. O que vale é que foi Sol de pouca dura e ainda não tinha abandonado o edifício do município, já sentia novamente a alegria de estar por pouco o regresso aos filmes. Por enquanto estamos apenas a fazer a soiré dos sábados e tivemos invariavelmente a casa cheia, mas brevemente iniciaremos as matines mais voltadas para as crianças e como até estamos a conseguir uma certa margem de lucro, contamos com a hipótese de virmos a ter sessões aos Domingos, se não de tarde e à noite, pelo menos neste último turno. Agora que já vimos uma boa meia dúzia de filmes e tivemos que repetir o “E Tudo O Vento Levou” porque aqueles que não viram não quiseram ficar privados do entusiasmo que viram nos outros, olho para trás e tenho a certeza que valeu a pena ter engolido em seco aquela ofensa e se tivesse que voltar a passar pelo mesmo, fosse para abrir ou reabrir aquelas portas, estou segura que o faria com o mesmo empenho e tenacidade pelos mais que muitos obstáculos que, no decurso de um processo longo, as autoridades nos foram colocando e que mais uma vez seria capaz do auto-controlo suficiente para me conter em face de outra afronta. É curioso como os hábitos se formam. Se houve quem se tenha estreado neste passatempo, como foi o caso de pelo menos duas famílias que vivem num monte vizinho e a quem sempre faltou a ocasião como o dinheiro para o custo do bilhete, tal como aqueles para quem a falta de assiduidade fez estranhar o seguimento de uma história por tais modos de narrativa, pouco mais foi preciso que um par de assistências para que toda a gente, no dia seguinte, comente o que viu e, por mais espantoso que pareça, até já surgiram aqueles que parecendo uns críticos experimentados, dão-se à discussão de qual foi o melhor enredo e quem foram os melhores e piores actores e, como não podia deixar de ser, aqueles junto de quem o senhor Abel tem feito perguntas a respeito da moral da história. E não é que ando a reparar que há este e aquele que começam a dar-se ares de Clarke Gable ou de um Mickey Rouney? Seja como for, foi uma enorme mais valia que, em termos culturais, conseguimos para a nossa comunidade e todo o universo humano que começa a girar à nossa volta e com o qual pretendemos partilhar pequenas coisas como esta que tanto contribuem para que nos possamos sentir contentes e naturalmente mais enriquecidos. Voltando àquilo que atrasadamente aqui escrevi sobre os pides, é isso que assusta essa gente para quem o Zé Povinho deve permanecer ignorante e amarrado e sobrecarregado pela canga do trabalho, ainda por cima duro e mal pago e muito menos se deve preocupar com questões de espírito, a menos que levem à resignação e nunca em circunstância alguma à subversão que, na opinião do Quico e do senhor Abel que tantas e tantas vezes têm insistido nisso, é a melhor forma que, no contexto da actualidade, temos para contribuir no sentido da mudança para um mundo melhor. E aqui vem a talho de foice dizer que a associação não se limita a esta actividade de cinema. Na tarde do último Domingo esteve entre nós o escritor Alves Redol que não só respondeu às perguntas que lhe colocaram sobre os seus livros e assinou uma série de autógrafos num bom número de exemplares que muitos de nós lhe puseram à frente, como, antes disso, nos deu uma palestra muitíssimo interessante sobre a literatura actual, portuguesa e estrangeira e o papel do escritor enquanto agitador de consciências. Tenho gostado dos seus romances, não tanto do mais famoso de todos, os “Gaibéus” que o próprio considera como a primeira obra neo-realista e na qual, segundo o seu ponto de vista, estabeleceu os contornos desse movimento literário e estético, mas os “Avieiros” é de uma densidade poética enorme, assim como o seu recente “Barrancos de Cegos”, tanto um como o outro de grande profundidade nos retratos humanos que nos apresentam. Mas acho que gostei ainda mais de o ouvir, muito claro nas ideias que expôs e sobretudo pela simplicidade com que fez chegar as suas palavras e ideias aos mais simples dos presentes. E gostei de o conhecer como pessoa. Comparativamente com o Mário Dionísio que também aqui esteve, não tem nada aquele ar afectado daqueles que se julgam na vanguarda que ao povo oferece a grandeza da sua sabedoria e visões superiores e que à mais pequena exigência logo mostram aquela expressão de enfado que acompanha a impaciência perante uma instrução mais mal conseguida e incapaz de elaborar cogitações firmes e pertinentes. Ainda mais longe está daquela pose professoral de um Sérgio, para quem a ignorância parece confundir-se com a tolice pura e simples. Ao contrário desses, ele soube usar as palavras e os exemplos mais acessíveis e com isso se fez entender na perfeição, coisa que ficou bem patente nas perguntas acertadas que a rendida e atenta plateia lhe colocou. E depois o à vontade com que comeu os petiscos e bebeu o vinho do beberete em sua honra, seria suficiente para sabermos estar na presença de um grande carácter que, pela maneira efusiva como se abraçaram, tudo leva a crer tratar-se de um grande amigo do senhor Abel em cuja casa jantou a sós com toda a família. O nosso próximo visitante vai ser um poeta de quem eu muito gosto, apesar de haver quem o tome por cinzento e demasiadamente pessimista. Vem aí o José Gomes Ferreira, exactamente quando, ainda não sabemos; está acertado o encontro, falta encontrarmos a melhor data para o levarmos a efeito.
Imagino a confusão que vai nas cabecinhas das autoridades, nomeadamente na do Presidente da Câmara.

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