terça-feira, 25 de dezembro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Por vezes temos ideias que nos parecem boas e que à primeira vista nos dão uma explicação confiável para um determinado problema mas, depois de atentarmos um pouco mais a fundo, acabamos por lhes encontrar a falta de sentido e, com isso, por vermos que afinal nada valiam e que mais não nos permitiram que a continuidade da elaboração de um erro. É engraçado ver isso que é o mesmo que perceber que também aquelas são como as cerejas e que atrás de umas outras vêm que se encadeiam ou não o que, em não poucas situações, nos permite a partir de um ponto chegar a outro, mais ou menos distante que não tem necessariamente que ver com o primeiro. É a deriva do pensamento, quando o deixamos solto e que provavelmente faz para algumas almas, entre as quais a minha incluo, o gozo que encontram na divagação em si. Viver é um acto tão maravilhoso. Para mim bastam-me as pequenas coisas que se nos deparam para sentir o extraordinário de cada dia. Ver o rodopio de uma borboleta entre um tufo de antenas coloridas onde as tonalidades se anulam mal se dá o passo imperceptível para que a desguarda da busca do pólen tenha lugar, é tão encantador quanto o intenso prazer que se sente por nos vermos perder de olhos no mar, nas mesclas que com ele se transmutam quando a luz decide brincar entre as nuvens e o ondulado da superfície. Por isso tenho para mim que seria o suficiente para, mesmo numa ilha deserta, ser feliz. Fosse como fosse, sempre teria o delírio de fogo de um ocaso para me ocupar e o fluir vadio da cogitação para me inebriar e me manter mentalmente sã. Eu acho que normalmente as pessoas confundem a satisfação e o prazer com a felicidade sem que consigam dar conta que esta é necessariamente interior e que por isso não só não tem que depender daquelas, como seria um desconcerto completo se, em termos ideais, pretendêssemos que a partir destas poderíamos aquela definir. Sentimo-nos satisfeitos por isto ou aquilo, sentimos prazer com uma ou outra coisa, mas não temos como encontrar um denominador comum a todas, pois o que causa satisfação a um pode não o fazer a outro e o que para alguém é fonte de prazer pode muito bem repugnar a outrem pelo que, tentar fazer derivar daí uma noção de felicidade seria uma atomização tal que, em tão ilimitada subjectividade, semelhante ideia tornar-se-ia completamente impossível. A felicidade é um estado de alma pelo que só pode ser interior e assim reconhecível em qualquer ser humano e nada mais é que a harmonia que sentimos com aquilo que nos envolve que até pode ser um deserto de toda e qualquer coisa e aí apenas se tratando de mera comunhão connosco e deixamos de nos sentir felizes sempre que, de alguma maneira, esse equilíbrio se quebra ou se perde. Ele há quem diga que se sente feliz por ter isto ou aquilo, por ser assim ou assado, mas lá está o erro, estamos sempre a falar de algo exterior a esse sentimento e que de modo algum se pode confundir com ele e, depois, a ser dessa forma, como poderíamos explicar que haja tanta gente rica que, podendo ter praticamente tudo o que está ao alcance das bolsas e tendo condições para serem o que quiserem, apesar de tudo isso, se sentem infelizes? Daí que hajam tantos e tantos dias em que o relâmpago que se me dá no peito por ver algum dos meus filhos crescer mais um pouco, por exemplo, seja o bastante para que todo o cansaço e desalento de uma jornada passe do peso e do cravar de uma pedra bicuda e áspera à leveza da carícia de uma pluma. Tal como o ir pensando me ajuda a suportar toda a fadiga de longas horas de trabalho físico. Pois desde o último dia que escrevi neste caderno que tenho andado a pensar naquilo que registei a respeito das amáveis visitas que os pides nos têm feito. É claro que não gosto mesmo nada de os ver cirandar por aqui e a raiva em face do sucedido permanece. Pudera, como aceitar que alguém seja incomodado por tratar condignamente o seu semelhante? Aonde chega a indecência? Já não há limites para a mesma? É que no caso chegámos ao desplante de nem termos que estar a tecer considerações de ordem política ou social quanto a questões de liberdade e afins. O absurdo, o mais abjecto, quanto a mim, é que nesta atenção que aquelas bestas nos têm dedicado, nem é nada disso que está em causa, tão só o facto de pagarmos salários que excedem os das práticas correntes, para além de conferirmos regalias que levam os nossos trabalhadores a sentirem-se numa espécie de sonho de que mais tarde ou mais cedo terão que acordar. Ora isto é o cúmulo da desumanidade de um regime que sabe muito bem que em boa parte se mantém precisamente por essa aposta na ignorância do povo e na sua incapacidade para melhorar a condição para o que a escola é o melhor mecanismo. Contudo, por mais espantosa que seja uma tal situação, temos que reconhecer que isso é assim segundo os nossos próprios pontos de vista, mas se formos racionais, se formos capazes de pensar com frieza e conseguirmos manter uma certa distância, compreenderemos então que, de acordo com a perspectiva dos algozes, eles têm na verdade boas razões para estarem preocupados com as nossas atitudes e em nos tomarem e classificarem por subversivos. Afinal é o que estamos a fazer, a subverter os alicerces em que se ergue o mundo em que vivemos, especialmente da parte que envolve este pedacinho de paraíso.

2 comentários:

Unknown disse...

Gostei particularmente deste pedaço de escrita. Identifiquei-me especialmente com a alusão à "deriva do pensamento". também eu encontro um gozo imenso na "divagação" em si. Às vezes, de tão concentrada , até me distraio...
E acho que estamos, também agora (e talvez nunca tenhamos deixado de estar)num regime que, apostando na ignorância do povo (também presente na informação sem crítica, sem filtro), apenas pode ser derrotado pelos subversivos... os poetas? Eternos inimigos do poder, esses, os poetas, resistem.

Luís F. de A. Gomes disse...

Como vozes vivas de coros da(s) consciência(s).

Infelizmente, concordo com a Teresa. Vivemos dias em que a poesia, só por o ser, volta a ser subversiva e as pessoas de bem começam a voltar a estar confrontadas com o dever de subverterem a(s) lógica(s) deste mundo que amesquinha o homem, em ele não conseguindo ver mais que uma simples mercadoria.