Como se constrói a memória? Tenho para mim que é através de fragmentos que à posteriori ajustamos e nos permitem reconstruir uma narrativa de um facto ou de um acontecimento e que tomamos então como a recapitulação ou, se quisermos, a versão em que ocorreu o evento. Com as ideias é um pouco diferente e, por vezes, acontece que somos capazes de recompor, ipsis verbis, aquelas que num dado momento se nos formularam no cérebro e retomar um dado pensamento tal e qual o havíamos feito. É a memória dos livros, dos conhecimentos que nos permite uma citação de cor ou o uso regular das matérias aí aprendidas. Com os outros episódios é mais normal que nos lembremos de algumas referências dos mesmos e aquilo que fazemos é um trabalho de modelação que depois nos apresenta não propriamente dito o que realmente ocorreu, antes a forma como nós o vemos à distância do tempo que tenha passado. É possível que em algumas ocasiões alguém consiga descrever uma situação com todo o pormenor e com o máximo de fidelidade àquilo que efectivamente se passou. Mas é invulgar que assim seja e o que geralmente se verifica é a tal manta de retalhos que mentalmente compomos de maneira a obter aquilo que tomamos como a descrição de um determinado pretérito momento. É justamente por isso que os anais sempre foram considerados tão importantes, antes de tudo para que os anos muito simplesmente não varram por completo a lembrança, mais tarde, com o desenvolvimento das Ciências da História, para que esta seja o mais rigorosa possível, o mesmo é dizer, coincidente com a sucessão e o emaranhado dos factos. E é também em parte para isso que podem servir as comemorações, para que através delas tenhamos oportunidade de registar as ocorrências que, em nosso entender, mereçam a classificação de mais dignas de permanecer na memória e, como tal, para que a mesma não se apague. Com isso deixamos aos mais novos os traços dos caminhos por que passámos para que possam entender aqueles que queremos percorrer. Foi o mínimo que pudemos fazer na passagem do vigésimo aniversário desta nossa comunidade, uma vez que a ninguém se colocou a possibilidade de elaborarmos qualquer monografia histórica que à posteridade viesse a dar conta de todo este nosso esforço e, porque não, sofrimento e, sobretudo, de tudo aquilo que temos conseguido aqui pôr em prática e erigido. E se é considerável o que produzimos e que tão bem é testemunhado pelo impacto das transformações que introduzimos na paisagem, desde logo pelo casario e os equipamentos com que urbanizamos os terrenos envolventes ao casarão e aos velhos armazéns anexos, afinal os únicos edifícios existentes quando aqui chegámos, mas também pelas estradas e caminhos de terra que abrimos na vastíssima propriedade que a bondade do José Pedro colocou à nossa disposição, estes para permitirem a ligação entre os diversos campos de cultivo ou as diversas matas e este núcleo residencial e aquelas para estes ligarem à rede viária do exterior e à área industrial que construímos numa das raias e onde construções fabris e a torre de uma chaminé passaram a pontuar um horizonte de clareiras e arvoredo que o vento ondula. Com efeito, é muito aquilo que conseguimos. É curioso como para além da família do senhor Abel que, por motivos óbvios, não tinha de quem escutar, todos os outros recordam que, aos respectivos pais e parentes mais velhos, ouviram a pergunta se achavam que seriam capazes de irem viver para o mato e aí conseguirem sobreviver algum tempo e em condições minimamente aceitáveis e ainda mais com o intuito que mais parecia o sonho de uma vida colectiva. É igualmente essa a recordação que tenho do paizinho e da mãezinha, quando eu e o Manuel aproveitámos um jantar para anunciar as nossas intenções e planos. Confesso que então, depois de ver a incredulidade que ambos manifestaram tão espontaneamente, mantive a inquietação da incerteza de saber decidir se não estaríamos a dar um passo em falso. Mas éramos novos e por isso estaríamos aptos a recomeçar no caso de as coisas correrem mal e isto apesar de estarmos dispostos a tudo fazer para que não tivéssemos que voltar atrás. E o tempo, esse mestre, encarregar-se-ia de ir negando as reservas eventualmente existentes a respeito tanto das nossas próprias convicções como das capacidades para o alcançar e isto por mais sensatas que aquelas o tivessem sido. Certo é que hoje usufruímos de rendimentos susceptíveis de inveja, temos condições de vida, de conforto e bem estar muito acima daquilo que pode ser considerado um padrão médio para a vasta maioria da Humanidade e temos uma perspectiva de segurança futura que nos coloca a salvo das piores consequências das tempestades com que sempre possamos ter que nos defrontar. Construímos um mundo em que temos podido educar os nossos filhos em liberdade, ao mesmo tempo que dispomos das possibilidades para lhes legarmos uma preparação que a todos habilite a virem a ser alguém nos trilhos que venham a escolher para o rumo dos seus dias. E não será digna de nota toda uma obra que do ponto de vista económico obtivemos? Uma fábrica de cortiça, uma de produção de azeite, uma outra de arroz e de concentrado de tomate e uma linha de empacotamento de frutos secos e de confecção de produtos alimentares, não será isso muito para um raio de vinte anos? É, sem a mais leve sombra de dúvida e se a isso somarmos todas as outras produções agrícolas em que nos lançamos e em que geralmente fomos bem sucedidos, dos cereais de sequeiro e regadio, como o trigo e o milho, ou o arrozal, aos pomares de fruta, assim como a exploração do olival e do sobreiral e do pinhal e à criação de gado vacum e ovino e a comercialização dos correspondentes derivados, se tudo isto considerarmos e quisermos avaliar com sentido de justiça, então teremos que concluir pelo muito que fomos capazes de realizar nestes anos em que os mais velhos dos nossos filhos e filhas estão prestes a chegar à idade adulta. E é bom que não nos esqueçamos que o que referi quanto à qualidade de vida inclui uma escola que vai do pré-primário ao curso completo dos liceus e ainda uma pequena unidade hospitalar onde resolvemos as mais básicas necessidades de saúde. É uma obra de vulto e merecedora de todo o respeito, como disse o senhor Abel no discurso que fez no jantar comemorativo que oferecemos a todos os trabalhadores que nos prestam serviço. Seja como for, isso é uma espécie de o lado visível do tal sonho que afinal até fomos capazes de levar à prática. Ora há um aspecto que, para mim, é muito mais relevante e meritório que é a forma como laboralmente nos relacionamos com aqueles que trabalham para nós, quer no que respeita aos salários com que lhes remuneramos o esforço e que reconhece as diversas e diferenciais competências e empenhamentos de acordo com critérios de justa repartição dos resultados alcançados, quer no que respeita às condições materiais que aqui encontraram para proporcionar aos seus filhos, através do ensino, os meios para singrarem na vida e melhorarem as condições sociais em que vieram ao mundo e que tem já o prémio de um moço que está a estudar em engenharia em Lisboa e de uma rapariga que dentro em breve concluirá o magistério primário. E uma outra coisa que muito me orgulha é a pujança da associação cultural onde o operário mais simples tem o ensejo de se aprazar com os alimentos do espírito que as diversas artes proporcionam à alma humana. De uma coisa tenho a certeza, os meus queridos pais seriam as primeiras pessoas a felicitarem-nos pelos feitos que temos conseguido. E também estou certa que seriam os primeiros a sentirem o gozo do erro avaliativo com que, inicialmente, encararam esta nossa ousadia.
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