terça-feira, 9 de abril de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Ai de nós se soubéssemos o dia em que iríamos morrer. Seria concebível um mundo assim? Dificilmente seria capaz de o fazer e mesmo admitindo que por qualquer motivo conseguiria imaginar um cenário em que tal pressuposto fosse real, a única certeza que posso adiantar é a de que o mesmo seria seguramente diferente daquele em que vivemos. Como conseguiríamos viver em paz com o semelhante se soubéssemos que a morte nos esperaria daqui a três meses? Como não aproveitar para satisfazermos prazeres que víamos ou sentíamos como apelativos, ainda que isso acarretasse o flagelo da desgraça e do sofrimento para alguém? Como nos poderíamos conter dos egoísmos mais sórdidos e mesquinhos numa realidade dessas? Haveriam sequer as possibilidades para criarmos quadros de valores para os limites da acção humana? São dúvidas estéreis, reconheço-o, pois na verdade estamos perante uma hipótese que nem se pode dizer ser meramente académica, antes uma ideia simplesmente fantasiosa. Contudo servem para melhor evidenciarmos o que há de empolgante na aventura de estarmos vivos e que é justamente essa incerteza que não se traduz apenas no desconhecimento da hora da morte e se estende afinal a praticamente todos os nossos pensamentos, decisões e actos. É pelos resultados que vamos obtendo, as consequências que vamos observando que nos certificamos se o caminho por que avançamos foi o mais sensato e não há como fugir a esta regra de irmos tentando, fazendo e corrigindo, voltando atrás e recomeçando, na mesma ou em via diferente, com a consciência de ir aprendendo nessa polarização entre a tentativa e o erro e o paradigma de sempre procurar ir melhorando. Naturalmente por isso a vida nunca é linear. Nem nos grupos humanos mais simples dos bandos de povos caçadores seria plausível encontrar alguém para quem o percurso vital tivesse sido linear. É certo que aí um jovem saberá que virá a ter que ser capaz de encontrar o alimento diário da mesma forma que o fizeram os pais e os pais destes antes deles e todos os outros pais de todos os pais. Contudo sempre haverão expectativas que não se concretizarão e com isso levam a inversões ou, pelo menos, sempre haverá espaço para que assim possa suceder e, como em toda a Humanidade, pois creio que isso será parte integrante da natureza humana e portanto aconteceu e acontecerá com todas as pessoas em qualquer lugar e em todos os tempos, nunca o indivíduo será o mesmo à medida que vai crescendo, pois aquilo que fomos na infância, nos primeiros anos de vida, melhor será dizer uma vez que o conceito de infância não terá que ser necessariamente universal tal como o concebemos, aquilo que fomos nesses primeiros tempos não será o mesmo que viremos a ser na idade adulta, isto é, ao longo das nossas existências, quer disso estejamos conscientes ou não e independentemente da nossa vontade, vamos sendo pessoas diferentes dentro de uma mesma identidade. Ora é isso que para mim é aliciante que me entusiasma quando penso na vida em geral e na minha, em particular e mesmo aqui nestas páginas que há tantos anos venho alimentando, já o devo ter expressado. Os sinais contraditórios, como aqueles arco-íris imensos que já vi formarem-se sobre a extensão da lezíria, na imagem dos quais bastam uns quantos passos para que passemos da superfície que está a ser bafejada pelos pingos para a vizinhança em que vemos abrir o azul do céu e deixamos de estar sob a acção da chuva. Tal e qual outrora prosperámos em hora de tragédia alheia e agora vivemos com uma felicidade que em tudo contrasta com este pão amassado pelo diabo que a repressão obriga o povo a comer. Não tenho a pretensão de ter uma memória histórica vigorosa – quem a terá, não será assim? – mas a deriva repressiva tem sido de tal ordem, especialmente desde que o General Humberto Delgado abalou para o exílio que quase me atrevo a dizer que se não estamos perante a maior vaga de prisões e todas as arbitrariedades desde que o regime se instalou, não andaremos certamente muito longe desses piores momentos. Aqui, mesmo entre os nossos trabalhadores, há pais de família enviados para o calabouço só por terem actividade cultural na associação. Uma das bestas da pide que o prendeu um deles e que deve ter um pouco mais de instrução, foi ao ponto de acusar o homem por promover ideais subversivos com o seu trabalho de bibliotecário, ao ter destacado “A Ressurreição” do Leão Tolstoi como o livro do mês. Como isso consiste num círculo – pequeno, como não poderia deixar de ser – de leitura em que, durante esse mês, se lê e conversa sobre o trabalho em apreço e, através da colaboração dos mais jovens e na base da cooperação com as práticas escolares, na organização de pequenas exposições sobre o Autor e a respectiva obra, o senhor Ernesto lá foi levado por alegadamente estar a promover a desordem pública. Aliás, diga-se a talho de foice, como nos é permitida uma tão grande autonomia pedagógica e didáctica é coisa que nunca deixou de pura e simplesmente me espantar. Às vezes dou comigo a pensar como o Quico que diz ser de uma pessoa perder a compostura e desatar aos tiros sobre essa canalha que outro nome não tem. E não há semana que a pidalhada não apareça por aí, regularmente não se limitando à ronda de um único dia, no entanto, mal sabendo que até teriam fortes motivos para voltarem a sitiar-nos, como já o fizeram e prenderem por aí a torto e a direito, pois no meio de toda esta tragédia, o senhor Abel e o José Pedro lá voltaram a dar guarida a gente que não podia ser apanhada. Lá está, a vontade de rir quando pela frente temos a possibilidade de fuzilamento. São as coisas engraçadas que ainda vamos encontrando por entre os escombros de tanta desgraça. Bem, independentemente de tudo isto, o povo tem andado perdido de entusiasmo com o Benfica que bateu o pé aos mais fortes da Europa e se sagrou campeão europeu. Até eu que nada percebo de futebol e nunca antes vira um jogo tal como ainda nunca estive num estádio, até eu dei conta de mim a contorcer-me no lugar e a repetir com os outros o “-Vai Santana.”, “-Chuta Zé Águas!” com que a expectativa do golo foi acompanhada por diversas ocasiões. Nas noites em que a televisão transmitiu alguns jogos, o café ficou de tal maneira cheio que muitos foram os que se sentaram no chão, por mais não caberem se todos trouxessem cadeiras de casa. Foi de tal ordem que muitos dos que, entre nós, ainda não tinham televisor, foram encomendar de propósito o aparelho para puderem ver a final no conforto da sala, tal como o fez o Manuel para quem, até aí, bastavam as emissões a que podia assistir na associação ou no café. E foi a tirar partido dessa avalanche de alegria que o senhor Abel, tinha que ser, ele tinha que fazer das dele, se lembrou de pendurar uma bandeira vermelha no topo do mastro do pára-raios do depósito de água, propositadamente com o emblema apenas num dos lados. Vista do chão, pelo empurrar do vento, aquilo mais não era que uma mera e provocatória bandeira vermelha. É claro que os pides se enxofraram e quase dispararam sobre alguém, mas foi com isso que morderam o anzol do gozo geral que o resguardo dos postigos e portadas permitiu. “-O quê? Uma bandeira comunista na nossa propriedade?”, ouvi eu ao José Pedro, com toda a calma, dizer para o agente a quem convidou para o acompanhar. E foi precisamente este que vimos descer com o pano na mão que abriu para o chefe, exibindo-lhe com isso o emblema da águia. Et pluribus unum, terão sorrido para si, todos os que saborearam o ridículo em que aqueles algozes caíram. Só por isso valeram a pena todas aquelas noites em que todos vibramos pelo Benfica, o símbolo dos pequeninos que derrotaram os mais fortes.

2 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Fico-me pelo breve comentário à primeira frase: não sabemos O dia, mas sabemos que é UM dia.. isso não deveria ser o suficiente para vivermos O TUDO?
Também vou reflectir sobre o assunto!

Boa 3ª Feira!
Amélia

Luís F. de A. Gomes disse...

É isso Amélia, na crónica que nos vai fazendo, a narradora também vai elaborando uma reflexão sobre a vida, ao longo da vida.

Seria engraçada essa reflexão no contexto da época a que reporta este capítulo.

E a 3ª. Feira foi atípica, nem boa nem má; vale que sempre podemos ir viajando pelo pensamento.

Luís