terça-feira, 23 de abril de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Afinal era esta a profissão que o paizinho dizia não só estar ao meu alcance, como ainda seria aquela que melhor se adaptaria à minha condição feminina. É curioso como as pessoas nunca são monolíticas nem lineares, isto é, raramente se constituem numa mesma massa que ainda menos se faz num todo coerente em que as diversas facetas estejam de acordo entre si e derivem umas das outras por sequências lógicas, elas próprias fruto de decisões conscientemente premeditadas. Antes é mais frequente que acabem por ser empurradas ou, no mínimo, condicionadas pelas vicissitudes do quotidiano que tantas e tantas vezes sequer controlam e dependem da sua vontade, os percursos vitais de cada um vão sofrendo alterações que, aqui e ali, provocam modificações tais que chega a parecer que, em dadas situações, estamos perante pessoas distintas apesar de sabermos que apenas estamos a considerar um único indivíduo. O meu querido pai também era essa mistura de antigo e moderno que ora expressava pontos de vista muito avançados para o seu tempo, ora tecia considerações a partir de formas de mentalidade e referências culturais de antanho. Era ele um homem de grande sabedoria que, no recato da casa e do repouso após o dever, procurava manter alimentada e actualizada, na concomitância de saber tirar partido de todos os recursos que tinha à disposição para se manter a par do que se ia passando pelo mundo exterior e, certamente por isso, era capaz de tecer sólidas e fundamentadas opiniões sobre o presente, da mesma maneira que se atrevia a olhar o futuro para sobre ele estabelecer algumas previsões. Era um homem extraordinário, o meu adorado pai, ávido por satisfazer uma curiosidade ilimitada pelo que não se cansava de reunir dados e informações a respeito das mais pequenas coisas e até parece que o estou a ver, cheio do entusiasmo de uma criança em torno do seu brinquedo preferido, a ler em voz alta, para que a mãezinha pudesse partilhar, as cartas em que um amigo lhe respondia às perguntas que lhe ia colocando quanto à maneira de viver na grande cidade de Nova Yorque para onde emigrara e onde vivia e trabalhava há muitos e bons anos. Era esse o lado vanguardista do paizinho que o levava a dizer que o mundo de subalternidade em que as mulheres têm vivido está condenado mesmo que tão só no longo prazo e, por isso, me aconselhava a preparar-me para ter uma profissão que me permitisse viver com dignidade e algum conforto mas, sobretudo, me conferisse a independência de não ter que precisar de quem quer que fosse e muito menos de homem algum. Depois lá vinha a figura do seu tempo e de uma sociedade provinciana como era e continua a ser aquela em que foi criado e lá avançava ele com a distinção entre aquilo que seria uma vida profissional adequada e entre todas aquelas que, no seu entender se ajustariam a alguém como eu, uma vez estar fora de causa a eventualidade de vir a abraçar uma carreira médica como, desde muito cedo ficou claro, perfeitamente claro, reforçaria, isto em função dos meus gostos e até aptidões, as funções na docência eram aquelas que melhor recomendação lhe mereciam e quando eu comecei a manifestar interesse pelos assuntos filosóficos e mais tarde defini a vontade de vir a fazer estudos superiores nessa mesma área, logo ele me incentivou a seguir em frente e serenou quanto ao acerto da escolha, justamente com o argumento de que por essa via poderia vir a entrar na docência e vir um dia a ganhar a vida com algum desafogo. Aliás, daí a aflição que senti nele quando eu e o Manuel demos conta do projecto de vida em que pretendíamos enveredar e que tanto a ele como à minha querida mãe pareceu uma aventura sem sentido. Pois foi por isso que este que acabou por ser o meu encontro com a profissão docente, afinal, mais não foi que uma espécie de reencontro com aquilo que parecia estar-me destinado. E em boa hora, tenho que o confessar. É verdade que depois de ouvir a proposta para assumir o cargo de professora nesta nossa escola, a primeira reacção foi a de tomar-me de hesitações para aceitar o lugar. Era natural que me surgissem reservas em face da impreparação que era, de todo, evidente e das dúvidas que então me surgiram como razoáveis quanto ao facto de me poder capacitar para a função e na mesma me conseguir manter actualizada. Mas o tempo veio a mostrar-me como estava enganada e acima de tudo a permitir-me aceder a esse estádio de formação permanente, quer através dos mecanismos oficiais que para isso estão à disposição de quem quer entregar-se a tão nobre profissão, quer no âmbito das actividades que, para esse efeito, vamos desenvolvendo aqui entre nós. No entanto, não foi apenas aí que as minhas reticências iniciais se dissiparam e aqui devo dizer, até com algum grau de surpresa para mim. Certo, certo é que eu nunca imaginei, provavelmente jamais o poderia ter feito, o quanto eu viria a gostar do exercício que é o acto de ensinar. Antes de tudo não era capaz de prever como tenho tanta presença de espírito para anular as dúvidas mais profundas que os alunos sempre vão manifestando num ou noutro caso, como acabo regularmente por saber ilustrar uma ideia com exemplos que não tinha planeado e como me ocorrem conhecimentos que, amiúde, julgava esquecidos no desuso que até então lhes tinha dado, ao ponto de chegar a ter a sensação que sequer os possuía. A paciência para ouvir e me entusiasmar com as leituras e conclusões dos alunos, mesmo aquelas que, de imediato, vejo como erradas e fantasiosas, a precisar de remendo ou da rejeição pura e simples e, mais que isso, o saber esperar pelo ritmo do aluno aprendiz para lhe transmitir como e no que deve emendar, eis atributos que, à partida, em circunstância e por motivo algum conseguiria adivinhar em mim e isto mesmo tendo em conta que tenho criado dois filhos e, sem me querer estar aqui a colocar num patamar acima de quem quer que seja, nem possa dizer que me tenha vindo a sair mal, se disso é prova o carácter e energia daqueles que criamos. Contudo, uma coisa são os nossos filhos que não nos pediram para os trazermos ao mundo e a quem nos liam relações de afecto e amor que nos levam a encarar as adversidades com o espírito de tudo querer fazer para as ultrapassarmos, sem olhar a canseiras e a gastos de tempo. Outra coisa são os alunos por quem obviamente poderemos sentir o peso da responsabilidade de os sabermos dependentes do nosso engenho para connosco aprenderem, mas perante quem não temos a obrigação de zelar para que, no seu todo, venham a ser pessoas de bem. E isso surpreendeu-me; sinceramente nunca me teria imaginado capaz de ser tão paciente e compreensiva com o gosto e o empenho de cada um na aprendizagem e tenho para mim que não só venho obtendo resultados positivos, pois é isso que se conclui do bom aproveitamento dos vários rapazes e raparigas que depois de passarem pelas minhas mãos, já frequentam o ensino superior e universitário, bem como o desembaraço e os excelentes desempenhos daqueles que não tendo querido continuar a estudar, seja aqui, nas nossas unidades de produção, seja fora daqui, já entraram na realidade do trabalho diário, como, mais importante, tenho ajudado a contribuir para o gosto pelo saber e conhecimento como indirectamente o indicia a intensa e variada actividade cultural da nossa associação onde, como não podia deixar de ser, os mais jovens têm um papel tão relevante e um desempenho considerável. É a melhor recompensa de todo o esforço que tivemos com eles, vê-los capazes de voarem pelas suas próprias asas e confiantes das suas competências e capacidades. É a consciência do dever cumprido e o saborear do gozo que isso nos dá. Seja como for, há o prazer incomparável de presenciar aquilo que particularmente chamo de efeito de orquestra que, para mim, é o aspecto mais reconfortante da prática de ensinar. É o que resulta do estado de ignorância com que os mais jovens nos chegam à frente e que a nós compete ultrapassar iniciando-os numa determinada linguagem e método de pensamento e é aí que vejo o paralelismo com a orquestra que, no começo, pode estar desafinada e que à medida que os ensaios vão evoluindo vai tocando cada vez mais afinada, ao ponto de as diversas secções, tantas vezes, se nos assemelharem ao desempenho de um único instrumento excelentemente executado. É o que se passa com os alunos que no primeiro dia nada sabem da nova disciplina e pelo decurso da aprendizagem começam a dominar conceitos e a linguagem, chegando ao fim do ano prontos para conversarem com preceito e a propósito a respeito dos assuntos que aprenderam. É isso que mais me impressiona e motiva na actividade docente e que maior alegria me dá poder observar, esse momento que nunca sabemos quando chega mas a partir do qual o passarinho começa a ter força nas asas para voar sozinho. Só quem nunca passou pelo mesmo, terá dificuldade em compreender a profunda alegria que sinto por isso.

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