domingo, 14 de abril de 2013





Foto: Edgar Cantante


RETRATOS – I


Ia eu andando, de noite, na rua onde moro.
Era já tarde na noite quando ouvi, através da persiana entreaberta da janela, uma voz que chorava baixinho num desconsolo que tocava.
Chorava, baixinho chorava.
Pensei parar para ouvir, achei que não devia mas algo em mim queria escutar o que o choro carpia.
Ando não ando, paro não paro, a indecisão irresolvia se ouvir ou não o que a voz gemia.
Não parei porque alguém se aproximava na noite na rua onde moro.
De modo que fiquei sem saber que dramas ou que dores ali aconteciam mas sei que era noite e por detrás da janela de persiana entreaberta alguém chorava, alguém sofria.

*

E então fui andando para o sítio onde ia, sentindo que algo em mim se transformara já. Senti que algo naquela dor que eu desconhecia e me não pertencia, em mim entrara e comigo trazia.
Entrei no bar.
Uma música passava, soava. Era uma balada que um homem cantava. Cantava em inglês. Era uma balada longa, dolente, onde se contavam amarguras de uma vida sem picos de luz como tantas vidas.
No bar, a gente era pouca. Ninguém me pareceu suspenso da balada embora a balada passasse na mesma. As baladas são assim. São só para quem gosta ou para quem repara nelas.

Manuel João Croca





4 comentários:

Luís F. de A. Gomes disse...

É uma das provas mais pavorosas de como esta sociedade de consumo em que, na vertigem da lógica do lucro, o homem, o ser humano, socialmente, o cidadão, foi transformado em consumidor, a humanidade está cada vez mais ausente na solidão para que os ritmos de um tal mundo remetem todos aqueles que foram engolidos por ele e que, afinal, somos todos nós.

Mas é por isso que este será o séculos das revoluções que devolverão o Homem a si e à Natureza de onde a produção e a propriedade o afastaram.

Aquele abraço, companheiro
Luís

luis santos disse...

Um dia destes fomos ao "Be Jazz" ver a apresentação do último trabalho de um dos melhores músicos da nossa praça
Intervenção e crítica social afinada
Cabeleireiro como o outro
O seu passado artístico cheio de pérolas e a sua portentosa criatividade teatral deixavam-nos entusiasmados e curiosos
O homem entrou no palco pelo meio das luzes, ambiente cénico preenchido, uma produção que prometia outros desenvolvimentos
E começou assim: "Benvindos ao Clube da Tristeza"

Um sobressalto
A depressão financeira tinha-se instalado, nos mais soltos, nos mais livres. Então, mas não foi sempre essa uma das partes da vida, o outro lado da lua, perguntámos nós

Tem baladas assim, tristes mas cheias de esperança
E depois, quando se chora de mansinho, logo o coração se ilumina

Unknown disse...


Gosto tanto dos que se deixam transformar pelo que de tristeza se ouve por uma janela de persiana entreaberta. Por isso, ainda espero o dia em que hei-de ser capaz de parar mesmo quando de noite alguém se aproxima na rua onde moro...

MJC disse...

Caros Amigos, Cara Teresa, obrigado pelos vossos comentários.

A tristeza maior é, creio, a indiferença que deixa cada um entregue a si, só.

Uma defesa pela sobrevivência
crê-se.
Uma traição so ser, crêem outros. O pior dos males.

Que venham pois as revoluções.
Que venham pois as fases várias da lua, contemplaremos todas.
Que venham as depressões financeiras e as tristezas e, até, as alegrias, saberemos vivê-las e ultrapassá-las.
Que venha o que seja que estaremos cá.

Mas que ninguém fique para trás por caído.
Para que quando for preciso paremos mesmo. Para seguirmos depois melhor. Todos.

Abraços,

Manuel João