quarta-feira, 3 de abril de 2013

LIVROS DE ÁFRICA












JOSÉ MENA ABRANTES


Nasceu a 11 de Janeiro de 1945 em Malanje (Angola), onde estudou até aos 15 anos. Concluiu o liceu em Luanda, tendo-se licenciado em Filologia Germânica em Lisboa (1969). Viveu exilado na Alemanha Federal entre 1970 e 1974, ano em que regressou definitivamente a Angola e se tornou jornalista. Em 1975 participou na criação da agência noticiosa ANGOP, a cujo quadro directivo pertenceu durante 9 anos.
Antes de ser nomeado assessor de imprensa do Presidente da República, cargo que ocupou durante algum tempo a partir de 1993, foi responsável pelo sector de informação e divulgação da Cinemateca Nacional.
Faz teatro há mais de trinta anos, dirigindo, desde a sua criação em 1988, o Grupo Elinga Teatro, que tem participado regularmente em festivais em África, Europa e Américas.
Ganhou por três vezes (1986, 1990 e 1994) o Prémio Sonangol de Literatura. Do livro "CAMINHOS DES-ENCANTADOS", publicado pela Editorial Caminho em 2000, obra que reúne 33 contos/crónicas escritos em apenas três meses, extraio um conto "arrepiantemente belo, usando as palavras do Editor. É um sentido e doloroso requiem dedicado aos mártires de uma das cidades mais castigadas pela guerra civil que assolou Angola logo após as eleições de 1992: a cidade do Kuito.


A MENINA
(à filha do Faria Horácio e ao seu irmão bebé, morto de fome no Kuíto)

Tem pessoas assim: que só ouvem os ritmos e a música que tocam dentro de si. Por exemplo a menina. Ela dançava, alheia aos tiros e explosões abrindo brechas e sustos na coragem dos adultos. A sua dança não tinha música do ar vibrando, sonorizada, mas a menina dançava. Como uma flor, no seu exíguo canteiro. Como uma borboleta no azul. O irmão pequenino olhava-a, sem sair da sua pouca idade, os olhos dançando a dança da menina, a fome iludida nos passos leves da menina. Ele não sabia, mas dessa música dependia o bater do seu coração. Por isso a menina dançava, dia e noite ela dançava, à chuva, nas clareiras, no meio do fogo dançava. Não parava de dançar. Era uma dança sem fim, uma dança sem horário, uma dança sem cansaço: uma dança tal igualzinha um coração de criança. Ela dançava e sorria, enquanto o tempo corria, enquanto vidas se esvaíam, enquanto a cidade ruía. Ela sorria e dançava. Sobre os escombros ela dançava, sobre as cinzas e as ruínas. Na espiral da sua dança, as trevas giravam sem rumo, desnovelando agonias. E ela dançando, dançando, segurando o fio ténue que ao seu irmão a unia. E foi num golpe de mau vento, num sopro de espanto e dor, que a chama se apagou e o pequenino lhe escapou, carregado de vazios. Inconformada, a menina prosseguiu o seu rodopio, querendo agarrar com a dança a vida que lhe fugia… Sobre a campa improvisada, no quintal bombardeado, segue a menina a sua dança, ouvindo os ritmos e a música que hão-de tocar sempre, sempre, no seu coração de criança.

Prosa poética, arrepiantemente bela…


Tomás Lima Coelho


4 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Tão belo, de uma beleza que incomoda, que entristece, que não nos pode deixar indiferentes... não enquanto sabemos que ainda há crianças a dançar sobre os escombros, reais ou metafóricos, de guerras feitas pelos homens com agá pequeno, que roubam os filhos às suas mães: 'Jaz morto e apodrece/O menino de sua mãe.' - até quando?

Amélia Oliveira

MJC disse...

Magnífica e sucinta apresentação de um Autor para mim, ainda, desconhecido.
A primeira consequência disso é que, tão cedo quanto possível, irei no seu encalço e hei-de descobri-lo.
Assim procurarei enriquecer-me e, simultâneamente, homenegear o Autor e o Tomás Lima Coelho que no-lo apresentou.

Um abraço.

Manuel João Croca

luis santos disse...


...Creio até que foi a dança dessa menina, de indescritível beleza, as duas, a dança e a menina, que fizeram com que a paz chegasse mais cedo à Lusofonia. Dívidas perdoadas. Há gente assim, capaz de dançar no meio das tristes balas. E no movimento da dança uma promessa de eternidade. Dessa gente haveremos de escrever com agá grande. Obrigado ao Tomás pela partilha. Abraço.

Unknown disse...

Este texto cheira a África e traz-nos, com uma enorme sensibilidade, o horror da guerra. Fiquei a pensar: aconteceu, de facto. Parabéns pela escolha. São momentos únicos, os de poder ler algo assim.