Harém, António Tapadinhas, 2003Óleo sobre tela, 70x80cm |
UM MUNDO DE CERTEZAS
Acordei com o chilrear das diversas gerações de pardais que, sem minha
licença, paulatinamente, ocuparam o sótão de minha casa.
A minha saída, só foi notada por King, o Serra da Estrela que, bem-educado,
me ladrou o seu bom-dia.
Dirigi-me ao quiosque, onde comprei o jornal.
Pouco depois, entrava no café.
Não foi preciso pedir nada. Passados alguns instantes, tinha na mesa o bule
com o chá preto e a meia torrada de pão caseiro.
Todos estes movimentos complicados, foram feitos sem hesitações, com
simplicidade, quase maquinalmente.
É tão cómodo ter certezas!
Aterroriza-me a possibilidade de ficar indeciso, perante qualquer situação
imprevista. Tomar uma decisão, apavora-me. Perco o tempo, que não tenho, para
fazer o que quero e para o qual o resto da minha vida não vai chegar. Ao ocupar
o cérebro com a resolução de pequenos problemas, corre-se o risco de esquecer o
que é fundamental.
Aquilo que alguns podem admirar como segurança de atitudes ou opiniões, não
passa de uma defesa à minha recente incapacidade de tomar decisões. Para ser
mais correcto, digamos que fiz uma troca - fico afectado na aptidão de decidir,
logo aumento a minha gama de certezas. Quando me levanto da mesa, já tenho na
mão o dinheiro certo. É um estratagema que evita ao dono do café o problema de
fazer contas, de introduzir dois preços numa máquina de calcular protegida por
um plástico, com teclas minúsculas como lentes de contacto, difíceis de premir
uma de cada vez, pelos dedos de um adulto normal e ainda mais por qualquer das
suas cinco salsichas alemãs, por muito que ele tente afiá-las, introduzindo-as
em orifícios pequenos, como as fossas nasais ou os buraquinhos dos ouvidos.
No regresso, antecipo, com prazer, as manifestações de alegria na minha
chegada a casa.
É bom ter a certeza do amor de alguém. Mas o melhor é gozar a demonstração
desse sentimento, sempre que voltamos, passados cinco minutes, cinco horas,
cinco dias... Sem queixas, porque o dia correu mal no trabalho, ou por causa da
chuva, ou porque um familiar está doente, ou porque o buraco do ozono continua
a aumentar. Sem reservas. Chegaste. Estou
aqui para provar que te adoro. Lambo as tuas mãos, cheiro as tuas calças, dou
patadas a pedir festas, se possível atrás das orelhas. Ladro de alegria para
avisar toda a gente que chegou o melhor dono do Mundo.
Entro em casa, limpo de todos os germes apanhados na minha viagem ao
exterior, desinfectado por este banho de amor, como um astronauta, ao reentrar
na Terra, depois de passar pelas câmaras de esterilização.
Imaginem um mundo em que todos tivessem esta capacidade de amar, sem
reservas, sem perguntas…
Amar porque sim,
ponto final!
10 comentários:
Gostei,
porque Sim.
Ponto final
(.)
Excelente semana!
Amélia
Amar porque sim.
Podia ser tudo tão fácil.
Um abraço
Manuel João
Apesar das certezas mais cómodas e dos medos mais certos, estou em crer que o amor melhor é o mais difícil… é o que resiste aos dias que correm mal no trabalho, à chuva, à doença de um familiar ou ao aumento do buraco de ozono.
Esse também é sem reservas. Porque sem dono. E com perguntas…
Será?
Amélia Oliveira: Ainda bem que gostou...
...e deu uma razão inquestionável:
porque sim!
Boa semana!
António
MJC: Podia...
se todos quisessem!
Abraço,
António
Teresa Bondoso: As perguntas ainda conseguimos fazer...
...o difícil, mesmo, é encontrar respostas!
Boa semana,
António
"Amar porque sim, ponto final."
Na minha vida pessoal tenho por verdadeira essa afirmação e a ela me encomendo. Esse é, tem sido, o maior gozo a que posso aspirar e por mim sempre tido como o único sentido que vale verdadeiramente a pena, neste lapso de instante em que por aqui passamos.
Contudo não deixo de me perguntar se poderemos encontrar no amor, pelo menos no amor passional, um dos caminhos da salvação.
Não é perturbante saber que houve quem tenha interrompido a Lua de Mel para participar nas matanças da Shoah?
É tão estranho o ser humano e ao mesmo tempo tão empolgante que às vezes dou por mim a pensar que, até ao fim dos meus dias, haverei de viver em permanente estado de perplexidade.
Hoje apetece-me o recolhimento de uma oração, de um kadish, talvez pelos que foram assassinados de Berger Belsen, cuja libertação se comemora precisamente hoje, um bom dia para reflectirmos justamente sobre o amor, o Amor que foi ao que a Teresa nos convidou aqui.
Luís
Luís F. de A. Gomes: Pego na tua referência aos assassinados no campo de morte, Bergen-Belsen, 70.000, 20.000 dos quais, soldados soviéticos.
Anne Frank (essa mesmo, a do diário) morreu nesse local de horror, em Março de 1945.
Tudo isto para referir que
o pop star adolescente Justin Bieber, otário de Ontário, escreveu há dias no livro de visitas do museu Anne Frank, que ela poderia ser uma "belieber", nome pelo qual chama as suas fãs.
O que lhe têm chamado a ele, podes ver, se te quiseres dar ao trabalho, nas redes sociais...
Abraço,
António
Cada vez gosto mais dos meus adolescentes: este ano trabalho com 200 (aprox) e TODOS/TODAS (ainda não encontrei uma excepção) detestam esse otário de Ontário! Desconhecia o facto que o António relata, mas fico grata por haver tantos jovens inteligentes e sensatos! Falarei com eles sobre esse facto, hoje, nas minhas aulas!
Amélia
PS - António, ainda fiquei a pensar no assunto e, de facto, como poderiam os 'meus adolescentes'gostar do Bieber, quando elegem 'Os Índios da Meia-Praia' para acompanhar o quadro do Sorolla, não é? :) Que Bom!
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