segunda-feira, 29 de abril de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (26)

Chamada da Morte, Autor António Tapadinhas, 2001
Tinta da China, sobre Cartolina, 30x23cm


CHAMADA DO ALÉM
Pela primeira vez, mais de um ano decorrido sobre os acontecimentos de que fui actor involuntário, vou relatar o que se passou, com a certeza de que apenas servirá para aumentar dúvidas arrepiantes e (porque não dizê-lo?) elevar o meu medo, num crescendo aflitivo, inexplicável, assustador e sinistro.
Não pretendo desvendar nenhum mistério, nem formular hipóteses de explicação. Pretendo apenas (e é tanto!), exorcizar fantasmas.
Tudo começou nessa noite de Inverno, com vento de agulhas e frio de gelar fogos. Entrei no café e sentei-me, tremelicando o pedido de uma bebida, enquanto amaldiçoava o tempo.
Na mesa ao lado, um homem que eu via pela primeira vez, concordou comigo:
- “ Tem razão! É uma porcaria de tempo! Mas repare que assim tem algo de concreto para odiar. Eu, infelizmente, nem isso tenho! É tão bom odiar: o tempo, a vida, as pessoas…”
Era tão estranha a sua conversa, na normalidade das suas roupas, tão singular a sua maneira de falar, que pensei estar a ouvir um louco. Sem uma pausa, continuou, em jeito de confissão:
- “ Nunca disse a ninguém mas vou confiar-lhe, a si, porque é um desconhecido, o meu segredo: eu vivo apavorado! Oiça bem: apavorado! “ - e puxava-me as bandas do casaco, as mãos como cabos eléctricos a ligar-me à veemência do seu grito.
( E tinha razão: eu senti a corrente a passar!)
- “ Sou orgulhoso demais para contar a um amigo, o medo que me dilacera a alma, o pavor da Morte. Sou escritor. Nos meus livros, conto as minhas impressões de viagens a terras distantes, às mais estranhas, porque quero ser diferente, original. A Vida não tem de ser igual para todos. Igual só o Nascimento e a Morte - o Princípio e o Fim. O que se passa durante, depende de cada um de nós. Uma certeza que se desfez como bola de sabão, numa tempestade de granizo.”
Mandei vir mais duas bebidas: já não podia fugir.
- “Há quinze dias, o meu melhor Amigo e Mestre (palavras quase sempre sinónimas) morreu inesperadamente. Uma pequena Eternidade para mim, toda a Eternidade para ele. Será que podemos fraccionar a Eternidade? Como se medem Eternidades? Einstein estava enganado e enganou-nos a todos: a luz, afinal, era mais veloz no Princípio. Será que está a perder velocidade desde então? Sendo assim, todos nós ficaremos agarrados a um imenso buraco negro, no fim do Mundo.”
Engoli o resto da bebida. Fazia-me falta!
- “Temi endoidecer! Quase uma semana depois da morte do meu amigo, a sua viúva telefonou-me com gritos silenciosos de terror estridente na sua voz. Queria encontrar-se comigo. Arrumei a minha dor, subitamente desperta, numa prateleira e saí a correr. Afinal não era nada urgente ou inadiável. Tinha a ver com a Eternidade: um assunto que pode esperar!
Para encurtar razões, depois da sua morte, nunca mais conseguiram encontrar o seu telemóvel. Mas ele existe - não morreu com o dono, como os servos dos faraós. A Companhia continuou a debitar chamadas para pessoas com as quais não temos a possibilidade (não?) de falar: Fernando Pessoa, Alexandre Herculano, Mário de Sá-Carneiro, José Cardoso Pires… Sabe o que sugeri?”
Abanei a cabeça.
- “Abram a sepultura, exumem o cadáver, procurem e destruam o aparelho, antes que as larvas e os vermes comam tudo, como os vampiros da canção.”
Um calafrio percorreu-me o corpo, mas mesmo assim consegui sorrir, enquanto dizia:
-É um mistério, sem dúvida mas não é caso para ficar aterrorizado.
O homem olhou para mim, com arrepios de gelo azul nos olhos:
- Esse telemóvel nos últimos dias tem chamado o meu número. Quando pergunto quem fala, só oiço ruídos de infinito.
Nesse preciso momento, ouvi com todos os meus sentidos a vibrar, um toque de campainha.
Um esgar de pavor, contraiu-lhe o rosto.
Atónito, petrificado, vejo-o a sair, correndo... correndo…
Levantei-me a custo. Consegui vê-lo, ainda, à esquina da rua, com um pequeno objecto na mão.
Perguntei ao dono do café se conhecia o senhor que acabara de sair.
- É um escritor e poeta muito conceituado, nosso cliente habitual. Sempre calado, calmo, a observar as pessoas… É estranho o seu comportamento.
No dia seguinte, na primeira página do jornal, lá vinha a notícia que eu não queria:
“ Morreu o escritor…”
Fiquei a olhar para a fotografia.
Acreditava no que via - a notícia, sem acreditar, ainda, no que tinha ouvido - a chamada da Morte.

9 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom dia, António!

Hoje não sei bem que o que escrever 'à laia' de comentário - mas escrevinhar umas linhas a propósito do 'Real...' faz parte das poucas rotinas que ainda gosto de manter!

Deixo-lhe, então, um verso de uma canção de que gosto particularmente, sobretudo cantada pela Joan Baez - suponho que quando surge 'a chamada da Morte' será o que de melhor poderemos dizer: ' Gracias a la vida, que me ha dado tanto' - o mesmo é dizer, vivamos cada dia como se fosse o último porque, um deles, será!

Um abração!

Amélia

MJC disse...

Bolas!!!! Coisa estranha...

Será que se um indivíduo não atender o telemóvel a coisa se afasta?

Vou preparar-me para deixar de usar o dito. É que, apesar de tudo, ainda tenho algumas coisas para cumprir.

Abraço.

Manuel João

Luís F. de A. Gomes disse...

Excelente, este conto a todos os níveis: ritmo, suspense, pela elegância da linguagem e, finalmente, pelo que nos convida a pensar.
Bem na tradição do conto negro que o Poe abriu e cultivou e que se espalhou pelo mundo de então até chegar a nós com, por exemplo, Mestre Eça, mais conhecido pelos romances intemporais que nos deixou.

Haja mais material como este.

Aquele abraço, companheiro

Luís

A.Tapadinhas disse...

Amélia Oliveira: Gracias a la vida, que me ha dado tanto, gracias ao EG que me permitiu conhecê-la...

Gracias também pela Joan Baez...

Abração retribuído, embora prefira um beijo... (que lhe darei quando for possível!)

António

A.Tapadinhas disse...

MJC: A maldição do telemóvel nem os mais cotados feiticeiros conseguem afastar...

É uma espécie de coelhite aguda que só se consegue exorcizar com um pau de marmeleiro...
:)
Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luís F. de A. Gomes: Deixas-me vaidoso com as tuas palavras.
Agradeço-as...

Tenho mais do género...

Sobre a qualidade, depois dirás!

Abraço,
António

Unknown disse...

Percebi finalmente aqueles que não atendem as minhas chamadas quando o nº não está identificado... acho até que vou passar a fazer o mesmo. Não vá o diabo tecê-las.
Soberbo, o EG de hoje... parabéns, António.

A.Tapadinhas disse...

Teresa Bondoso: Ficou com medo? Então espere até ler o próximo conto!

Agradeço as suas palavras, mas...

gostava de recordar que este espaço, este REAL... foi criado especialmente para si, porque me fascina a maneira como escreve, os personagens que cria e como os relaciona...

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Estou de abalada até Portimão, para passar uns dias com a minha filha e netos.

Para além de tudo o mais, acho que é uma boa altura para ir até ao Algarve, porque este frio já não se usa!

Passem bem!

António