Chamada da Morte, Autor António Tapadinhas, 2001 Tinta da China, sobre Cartolina, 30x23cm |
CHAMADA DO ALÉM
Pela primeira vez, mais de um ano decorrido sobre os acontecimentos de que fui actor involuntário, vou relatar o que se passou, com a certeza de que apenas servirá para aumentar dúvidas arrepiantes e (porque não dizê-lo?) elevar o meu medo, num crescendo aflitivo, inexplicável, assustador e sinistro.
Não pretendo desvendar nenhum mistério, nem formular hipóteses de explicação. Pretendo apenas (e é tanto!), exorcizar fantasmas.
Tudo começou nessa noite de Inverno, com vento de agulhas e frio de gelar fogos. Entrei no café e sentei-me, tremelicando o pedido de uma bebida, enquanto amaldiçoava o tempo.
Na mesa ao lado, um homem que eu via pela primeira vez, concordou comigo:
- “ Tem razão! É uma porcaria de tempo! Mas repare que assim tem algo de concreto para odiar. Eu, infelizmente, nem isso tenho! É tão bom odiar: o tempo, a vida, as pessoas…”
Era tão estranha a sua conversa, na normalidade das suas roupas, tão singular a sua maneira de falar, que pensei estar a ouvir um louco. Sem uma pausa, continuou, em jeito de confissão:
- “ Nunca disse a ninguém mas vou confiar-lhe, a si, porque é um desconhecido, o meu segredo: eu vivo apavorado! Oiça bem: apavorado! “ - e puxava-me as bandas do casaco, as mãos como cabos eléctricos a ligar-me à veemência do seu grito.
( E tinha razão: eu senti a corrente a passar!)
- “ Sou orgulhoso demais para contar a um amigo, o medo que me dilacera a alma, o pavor da Morte. Sou escritor. Nos meus livros, conto as minhas impressões de viagens a terras distantes, às mais estranhas, porque quero ser diferente, original. A Vida não tem de ser igual para todos. Igual só o Nascimento e a Morte - o Princípio e o Fim. O que se passa durante, depende de cada um de nós. Uma certeza que se desfez como bola de sabão, numa tempestade de granizo.”
Mandei vir mais duas bebidas: já não podia fugir.
- “Há quinze dias, o meu melhor Amigo e Mestre (palavras quase sempre sinónimas) morreu inesperadamente. Uma pequena Eternidade para mim, toda a Eternidade para ele. Será que podemos fraccionar a Eternidade? Como se medem Eternidades? Einstein estava enganado e enganou-nos a todos: a luz, afinal, era mais veloz no Princípio. Será que está a perder velocidade desde então? Sendo assim, todos nós ficaremos agarrados a um imenso buraco negro, no fim do Mundo.”
Engoli o resto da bebida. Fazia-me falta!
- “Temi endoidecer! Quase uma semana depois da morte do meu amigo, a sua viúva telefonou-me com gritos silenciosos de terror estridente na sua voz. Queria encontrar-se comigo. Arrumei a minha dor, subitamente desperta, numa prateleira e saí a correr. Afinal não era nada urgente ou inadiável. Tinha a ver com a Eternidade: um assunto que pode esperar!
Para encurtar razões, depois da sua morte, nunca mais conseguiram encontrar o seu telemóvel. Mas ele existe - não morreu com o dono, como os servos dos faraós. A Companhia continuou a debitar chamadas para pessoas com as quais não temos a possibilidade (não?) de falar: Fernando Pessoa, Alexandre Herculano, Mário de Sá-Carneiro, José Cardoso Pires… Sabe o que sugeri?”
Abanei a cabeça.
- “Abram a sepultura, exumem o cadáver, procurem e destruam o aparelho, antes que as larvas e os vermes comam tudo, como os vampiros da canção.”
Um calafrio percorreu-me o corpo, mas mesmo assim consegui sorrir, enquanto dizia:
-É um mistério, sem dúvida mas não é caso para ficar aterrorizado.
O homem olhou para mim, com arrepios de gelo azul nos olhos:
- Esse telemóvel nos últimos dias tem chamado o meu número. Quando pergunto quem fala, só oiço ruídos de infinito.
Nesse preciso momento, ouvi com todos os meus sentidos a vibrar, um toque de campainha.
Um esgar de pavor, contraiu-lhe o rosto.
Atónito, petrificado, vejo-o a sair, correndo... correndo…
Levantei-me a custo. Consegui vê-lo, ainda, à esquina da rua, com um pequeno objecto na mão.
Perguntei ao dono do café se conhecia o senhor que acabara de sair.
- É um escritor e poeta muito conceituado, nosso cliente habitual. Sempre calado, calmo, a observar as pessoas… É estranho o seu comportamento.
No dia seguinte, na primeira página do jornal, lá vinha a notícia que eu não queria:
“ Morreu o escritor…”
Fiquei a olhar para a fotografia.
Acreditava no que via - a notícia, sem acreditar, ainda, no que tinha ouvido - a chamada da Morte.
9 comentários:
Bom dia, António!
Hoje não sei bem que o que escrever 'à laia' de comentário - mas escrevinhar umas linhas a propósito do 'Real...' faz parte das poucas rotinas que ainda gosto de manter!
Deixo-lhe, então, um verso de uma canção de que gosto particularmente, sobretudo cantada pela Joan Baez - suponho que quando surge 'a chamada da Morte' será o que de melhor poderemos dizer: ' Gracias a la vida, que me ha dado tanto' - o mesmo é dizer, vivamos cada dia como se fosse o último porque, um deles, será!
Um abração!
Amélia
Bolas!!!! Coisa estranha...
Será que se um indivíduo não atender o telemóvel a coisa se afasta?
Vou preparar-me para deixar de usar o dito. É que, apesar de tudo, ainda tenho algumas coisas para cumprir.
Abraço.
Manuel João
Excelente, este conto a todos os níveis: ritmo, suspense, pela elegância da linguagem e, finalmente, pelo que nos convida a pensar.
Bem na tradição do conto negro que o Poe abriu e cultivou e que se espalhou pelo mundo de então até chegar a nós com, por exemplo, Mestre Eça, mais conhecido pelos romances intemporais que nos deixou.
Haja mais material como este.
Aquele abraço, companheiro
Luís
Amélia Oliveira: Gracias a la vida, que me ha dado tanto, gracias ao EG que me permitiu conhecê-la...
Gracias também pela Joan Baez...
Abração retribuído, embora prefira um beijo... (que lhe darei quando for possível!)
António
MJC: A maldição do telemóvel nem os mais cotados feiticeiros conseguem afastar...
É uma espécie de coelhite aguda que só se consegue exorcizar com um pau de marmeleiro...
:)
Abraço,
António
Luís F. de A. Gomes: Deixas-me vaidoso com as tuas palavras.
Agradeço-as...
Tenho mais do género...
Sobre a qualidade, depois dirás!
Abraço,
António
Percebi finalmente aqueles que não atendem as minhas chamadas quando o nº não está identificado... acho até que vou passar a fazer o mesmo. Não vá o diabo tecê-las.
Soberbo, o EG de hoje... parabéns, António.
Teresa Bondoso: Ficou com medo? Então espere até ler o próximo conto!
Agradeço as suas palavras, mas...
gostava de recordar que este espaço, este REAL... foi criado especialmente para si, porque me fascina a maneira como escreve, os personagens que cria e como os relaciona...
Abraço,
António
Estou de abalada até Portimão, para passar uns dias com a minha filha e netos.
Para além de tudo o mais, acho que é uma boa altura para ir até ao Algarve, porque este frio já não se usa!
Passem bem!
António
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